NOTAS DO MEU CANTINHO
Os picoenses eram um povo isolado, que só ia
às cidades na época do verão fazer os seus negócios de frutas e lenhas, pois a
ilha pouco mais produzia. Durante o inverno tecia nos teares o seu o principal
vestuário e fazia meias de lã. No
entanto, nos serões de inverno, naquelas noites em que o trabalho era “posto de
parte, porque ou eram dias de descanso, ou de festas familiares, organizava-se
as “folgas”, com a velha viola de cordas de arame e aí bailavam as “chamarritas”
e os “bailes de roda”. Mais tarde, apareceram os pianos nas casas solarengas,
mas nestas, raramente, havia aquelas distrações. Era o povo que melhor se divertia
nos serões ou Folgas que chegaram a nossos dias e que arrastavam bailadores entusiastas
dos mais distantes lugares. Improvisavam quadras e cantavam “ao desafio”.
Hoje, porém, recordo outros
divertimentos. Trago à liça as Danças Populares que se exibiam, principalmente,
nos arraiais.
Também por cá as houve, não em tempos
muito remotos. Eram diferentes das
actuais. Não se limitavam à coreografia dançante, mas havia sempre um argumento
a desenvolver. Fosse um namoro que envolvia certo escândalo, fosse uma comédia hilariante.
Tudo servia de motivo para se organizar a dança, porque nela se dançava nos
intervalos dos diálogos. E trajava-se a rigor. Não era qualquer fantasia que
servia para se utilizar numa dança. Ainda hoje se fazem danças na Terceira e
São Miguel. Até mesmo no Continente, onde têm fama as marchas de Santo António.
Mas limitam-se quase só à dança e usam trajes uniformes, executados a rigor
pela Alta Costura.
Na ilha do Pico, pela Páscoa, saíam algumas
danças, duas ou três, quando muito. E tinham os seus personagens tradicionais: o
“Velho” que andava pela assistência a angariar os indispensáveis donativos para
as despesas, o comandante, os “actores principais” e os “casais” componentes do
entremês. Estou a reportar-me ao primeiro quartel do século passado.
Lembro duas danças que me ficaram na
memória: uma “a dança dos picões”, que saiu nas Lajes, pela Páscoa, comandada
pelo Manuel Martiniano; a outra dança, bem organizada, com um argumento bem
concebido, trajando a rigor, veio da freguesia de São Mateus, creio que pelo
Espírito Santo, se a memória não me falha. No grupo só havia elementos do sexo
masculino, mas uma parte trajava-se de feminino e caracterizava-se e maquilhava-se
como se jovens mulheres fossem, o que não deixou, por vezes, de causar certos
equívocos e situações hilariantes.
Normalmente, o argumento era agradável e
a execução perfeita, pelo que o grupo atraía, por onde passava, uma assistência
numerosa e interessada.
A dança
de São Mateus percorreu a ilha e em toda a parte, se não erro, foi bastante
aplaudida. Uma das danças que, naqueles recuados tempos, teve êxito mais
assinalável.
Mais tarde apareceram, de outras freguesias,
algumas danças, mas de não tanto interesse, quer pela exibição quer pelo trajar.
As danças populares eram autêntico
teatro de rua. Exibiam-se em praças públicas. Não cobravam “bilhetes de presença”,
mas nem por isso deixavam de recolher donativos suficientes para as despesas de
organização, trajes, transportes e estadias nas localidades. O povo delirava, quando tinha notícia da
chegada de uma dança, e os arraiais onde se exibiam parece que duplicavam a
assistência.
Como atrás referi, não havia outros
divertimentos populares, pois as “folgas” limitavam-se a recintos particulares
e, por vezes, de espaços limitados. O teatro de amadores era raro e os recintos
onde se exibia, também acanhados, não permitiam grandes assistências. Aqui e
ali chegou-se mesmo a fazer teatro ao “ar livre”, sem cobrança de entradas, mas
somente com a recolha de donativos, o que se tornou um sistema vulgar.
Era no tempo de Quaresma que todos estes
divertimentos se preparavam e ensaiavam para se apresentarem ao público, quase
sempre, do Domingo de Páscoa ao Espírito Santo.
Em vez das danças, surgiram as
“Marchas”; as de S.to António, em
Lisboa, de São João, em Vila Franca do Campo, as Sanjoaninas, em Angra, e outras
mais.
No entanto, o que mais se divulgou
foi a Televisão. Cada qual utiliza a TV no canal que escolhe, para “assistir” aos
jogos de futebol, às telenovelas, ao teatro, a revistas e ao fado (mais raro)...
Hoje, os serões não são de melhor
qualidade. No entanto, são maneiras novas de ocupar os finais do dia. Valha-nos
ao menos isso.
Quinta-feira de
Comadres, 2017
Ermelindo Ávila
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