quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Recordando Angra dos anos 20 (2)


NOTAS DO MEU CANTINHO
Estou novamente na cidade de Angra para recordar os tempos de menino e moço, mal entrado na adolescência, a viver num grupo de moços de várias idades, saídos dos mais diversos meios e, por vezes, com incorrectos tratos de civilidade. Talvez por isso um dos compêndios que mandaram adquirir para a respectiva aula, intitulava-se simplesmente EDUCAÇÃO. Mas deixo esse recordar algo saudoso para trás, porque outras vivências há que aqui trazer.
Angra tinha, ao tempo, três estabelecimentos de ensino secundário: o Liceu Jerónimo Emiliano de Andrade, a Escola Comercial e Industrial Madeira Pinto e o Seminário Episcopal, frequentados por umas centenas de alunos. Isso bastava para dar à cidade um movimento álacre e jovial. Os estudantes do liceu, principalmente, paravam pelo Jardim Público que ficava um pouco abaixo do Liceu, então instalado no antigo convento de São Francisco, ocupando as salas do antigo Seminário. Este, depois de alguns anos andar a funcionar, clandestinamente, em casas particulares com aulas nas residências dos respectivos professores, havia adquirido o palácio do Barão do Ramalho, onde passaram a funcionar as aulas, salas de estudo e refeitório.
Os dormitórios eram fora: numa casa do Pátio do Conde, em Santa Luzia, no segundo andar da casa das Senhoras Menezes (hoje casa das obras católicas) e na sala onde, actualmente, se encontra instalado o Tesouro da Sé. Já então existia um novo edifício na rua do Rego, que servia de dormitório para um grupo de internos. Era a “Camarata do Dr. Couto”, pois foi esse Senhor, quando vice-reitor, que teve a iniciativa da sua construção. Mas era ver dois grupos de      alunos, diariamente, seguir pela rua da Esperança, atravessar a rua da Sé e dirigirem-se aos respectivos dormitórios ou deles sair todos os dias às 5,30H da manhã. Aos domingos, porque havia cinema no Teatro Angrense, o percurso à noite era alterado: descia-se a rua do Marquês até à rua da Sé e por ela se seguia, espreitando as montras iluminadas dos estabelecimentos comerciais, o que não deixava de ser agradável e até uma variante à rotina da semana.
E já que trouxe, aqui, o Seminário - que no presente ano comemora cento e cinquenta anos de existência, há que lembrar que os alunos só saíam três vezes por semana a passeio, depois do jantar – actualmente seria o almoço. O rapazio e até as meninas às janelas, quando viam os alunos do seminário, gritavam: Olha os estorninhos! Amanhã temos chuva! Naturalmente, que eram outros tempos. Hoje seria diferente, até porque os hábitos talares desapareceram e, os poucos alunos do Seminário, nem andam em filas como meninas colegiais.
Como instituto de ensino secundário e superior, o Seminário foi modelar. Um elenco de professores, a quase totalidade formada na Universidade Gregoriana, em Roma, constituía o corpo docente, proporcionando à generalidade dos alunos uma elevada formação cultural. Verdadeira Universidade, pode afirmar-se.
           Atrás, fiz alusão à casa do Pátio do Conde. No final do ano lectivo e, em certo ano, aí por 1928, realizou-se uma tourada à corda em S. João de Deus. Creio que é tradicional. O touro, naturalmente, passava no Pátio do Conde. Um grupo de seminaristas resolveu ir ver a tourada, coisa desconhecida para alguns. Empoleiraram-se num dos dragoeiros que lá existia. (Devem ter desaparecido com a construção do Posto Meteorológico.) Quando o bicho ia a passar a árvore, de fraca resistência, cedeu com o peso. Resultado: Contusões e braços desmentidos. E o pior é que os exames escolares estavam à porta…
          Na cidade, havia um grupo de indivíduos, alguns ainda adolescentes, a fazer vendas de artigos dos mais variados géneros: amendoins, milho torrado, alfenins, cajadinhas, e outros mais. Alguns, não por conta própria mas de outrem… No entanto, tornou-se uma figura carismática o “Tio quentinho” pois percorria o centro da cidade apregoando:”Ó quintinho, torradinho!”. E não faltavam os engraxadores na Praça Velha e até o João dos Ovos, sempre de marrafa e trazendo o balde de lavagens, pois era o seu serviço diário… Mas dessas figuras típicas melhor nos fala Augusto Gomes no seu excelente trabalho “Filósofos da rua”
               E de Angra quanto mais haveria para dizer! Fica para depois…

*Como acima se diz, o Seminário de Angra celebra, no corrente ano, um século e meio de existência. Presto homenagem aos professores que nele serviram e que o tornaram num autêntico estabelecimento de ensino superior.

Engrade, 8 / 9/2012    

Ermelindo Ávila


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Recordando Angra dos anos 20 (1)


NOTAS DO MEU CANTINHO

Estou longe do meu cantinho a recordar um passado distante, na pequena casa onde me alberguei estes dias de um verão ameno. O céu está límpido e o sol brilhante. Na minha frente as ilhas de São Jorge e da Terceira que se vêem distintamente.
Lembro-me de Angra, oitenta anos passados. Uma cidade calma e de vivência pacata. Quase não existia movimento interno a não ser nos dias de “São Vapor” – o “Lima” a meio do mês e o “São Miguel” (depois o “Carvalho Araújo”) no final do mês, na vinda de Lisboa e no regresso das “Ilhas de Baixo”, como eram designadas as restantes ilhas dos grupos Central e Ocidental, se bem que as Flores só eram visitadas no final do mês e o Corvo quatro vezes no ano.
Recordo-me da chegada a Angra do primeiro automóvel – uma baratinha, como diziam que, em certa ocasião, subindo a ladeira da Miragaia (para Santa Luzia) caiu num valado da empinada ladeira…
Uma moto, de escape aberto, todos os dias descia a rua da Sé vinda de S. Pedro, com o seu proprietário, comerciante de fazendas, com estabelecimento na Praça Velha. De resto os transportes eram feitos em carros de bestas, em charabans e coches, alguns com certo luxo, que ao domingo levavam as respectivas donas à Missa da Sé. Ficavam os veículos - coches luxuosos, normalmente puxados por fugosos cavalos, no adro da Sé aguardando que a dama cumprisse o preceito dominical. Os pobres animais não paravam a espantar os mosquedo que os atormentavam.
No cais eram os carros de um só boi, que durante o dia recebiam as mercadorias vindas de Lisboa e, no seu andar vagaroso e compassado, as conduziam aos estabelecimentos comerciais: José Júlio da Rocha Abreu, Basílio Simões e Irmãos e outros, depois de passarem pelo piquete da Alfandega, pois, enquanto estiveram em vigor as “barreiras alfandegárias” toda a mercadoria era sujeita ao pagamento de impostos, uma parte dos quais destinada às Câmaras Municipais que, neles, tinham as suas principais receitas. A cidade tinha boas indústrias e comércio.
Todavia, passados os dias de vapor, o movimento da cidade só se verificava quando havia tourada à corda, raramente de praça, em alguma “freguesia do campo”. Em certas touradas a cidade quase se despovoava.
Nos restantes dias eram os passeios ao Monte Brasil, à Memória, ao Cais da Alfandega ou ao Jardim Público, aliás, um excelente recinto arborizado e florido, onde apetecia estar durante as tardes de Primavera e Verão. À noite valia o Pátio da Alfandega, transformado em esplanada do Café Atlântico, que ficava superlotado.
Na realidade os habitantes citadinos quase não sentiam o isolamento. Tinham uma vida própria e uma convivência amistosa. Na sociedade principal era no Clube Musical Angrense que se reunia a velha aristocracia, que ainda existia, mas suas principais festas realizavam-se pelo Carnaval. Outras mais existiam como a Recreio, a Fanfarra, a Confederação Operária, e ainda outras que agora não recordo.
Angra possuía um escol de personalidades distintas. E só lembro o Dr. Luís Ribeiro, o Dr. Henrique Brás, o Dr. Henrique Flores e o Dr. Manuel de Sousa Menezes, o Dr. Manuel Almada, o Dr. Moniz Bettencourt, o Dr. Cardoso do Couto e o Dr. Garcia da Rosa, para só estes lembrar. Mas muitos havia a exercer as suas actividades liberais, comerciais e industriais.
O Teatro Angrense só exibia filmes mudos ao domingo. Por esses anos apareceu o filme sonoro “A Severa”, que constituiu um sucesso.
Notável era a Orquestra Henrique Vieira, como constituía um sucesso o Orfeão de Angra, do Pe. José de Ávila, sempre que se exibia em público.
A Livraria Editora Andrade era, nos Açores, um caso especial. Os poucos escritores açorianos a ela recorriam para a publicação dos seus trabalhos. Alguns, em número mais limitado, também utilizavam os serviços de “A União”.
Em chegando o mês de Maio esperava-se que chegassem os barcos do Pico nas suas viagens semanais, com notícias, passageiros e mercadorias – lenhas e vinhos e, mais no verão, ameixas e outras frutas. De início era a “Calheta”, uma lancha a motor que todas as semanas viajava do Faial, passando no Pico e São Jorge, para chegar a Angra, ao fim da tarde. E que agradável era vê-la costear o Monte Brasil, entrar na ampla baía para vir acostar ao cais da Alfândega, onde era aguardada por numerosos picoenses e jorgenses que em Angra residiam.
Sentado à sombra da pequena varanda, olhando o horizonte e descobrindo para Leste a Terceira distante, vivi os tempos da juventude que não volta, passados na Cidade (era assim que, para os picoenses da Ponta da Ilha, era conhecida Angra). Demais, hoje a cidade de Angra é tão diferente!
Engrade, 6-Setº-2012
Ermelindo Ávila


domingo, 2 de setembro de 2012

SETEMBRO, O MÊS DAS VINDIMAS



          Está a terminar o mês de Agosto e somos chegados ao mês de Setembro.  Em poucos dias entramos no  Outono. Outrora era o mês das vindimas  e das colheitas. Uma azafama que ocupava todas as famílias na  recolha das uvas e dos cereais que, se eram abundantes, garantiam o sustento de toda a família durante o ano e, por vezes, servia de moeda de troca para a aquisição de géneros nos comércios e não só.
          A Ilha do Pico vivia em Setembro o mês mais trabalhoso do ano. Antes havia a preparação das adegas: o lagar vigiado para não vazar o mosto, o recolher das uvas, a escolha, o pisar, o recolher o néctar precioso nos balseiros, o estar atento à fermentação.
          Nos campos de semeadura era a desfolhada, o descascar, secar e debulhar e a recolha nas “vasilhas”, inicialmente de madeira e mais tarde de zinco, os chamados latões ou depósitos de milho. Não se fazem “burras” como em outras ilhas pois, naturalmente o  clima húmido não permitia deixar a maçaroca em casca ao ar livre. “Cada terra com seu uso”, diz o adágio popular.
          Em anos ou mesmo séculos passados o vinho de verdelho era a grande produção e riqueza da ilha. Vários Historiadores se referem a esse néctar precioso que, embarcado para  a Europa, principalmente, era rei nas mesas dos czares russos.
      “No ano de 1658 houve tanto vinho no Pico e em S. Jorge que se “averiguou que deu a Ilha do Pico quase quarenta mil pipas e se houvesse aproveitado toda a novidade o que se não fez por falta de piparias, excederia com vantagem. Veio esta abundância suprir as faltas de 1662 e 1663 em que para as celebrações de missas vinha do Faial.” (In “Fénix Angranse,2º V. P.368)-
          Em “Notas Faialenses” (Arqº dos Açores, V.VII, pág 65  ) escreve Ernesto Rebello (1842-1890): “Dizem que foi um padre, Fr. Pedro Gigante, que há muitos anos introduziu, nos terrenos mais próprios da semelhante cultura, alguns bacelos de vinha proveniente da ilha Madeira. – Este padre foi, efectivamente, um gigante do nome e na ideia, um filósofo às direitas. Viu que ilha do Pico era extensíssima, ainda pouco povoada e todos os casais dispersos à beira mar; quis secundar a poderosa acção química dos mariscos sobre a organização humana, aumentar o nervosismo, o amor dum para outro sexo, via já formigar crianças por toda a parte, mas ainda achava que o crescite et multiplicamine da Escritura não estava bem realizado, queria, desconhecia a necessidade de mais gente na nova ilha e disse de si para si: Se aqui houvesse bastante vinho, mas bem, dum certo que eu conheço, daquele que dá força e vida, realizava-se o milagre”. Desculpa-se o devaneio filosófico, pela  palavra de incentivo à cultura que foi a riqueza da ilha.
          Informa o autor citado, no seu extenso trabalho sobre as uvas  do Pico  que “Dotar uma ilha com a produção anual de 12 a 15 mil pipas de excelente vinho, dando uma receita aproximadamente de 300:000$000 de rs. não é um facto que deva passar desapercebido”. No tempo em que escreveu as Notas, a Ilha do Pico tinha 27 mil habitantes. O concelho mais populoso era o das Lajes com 10.658 habitantes e a vila das Lajes com 3.215 h.     
No seu erudito trabalho acrescenta E.R.: Em quanto às castas de uva, temos: Verdelho, Verdelho Silvestre, Boal, Bastardo, Dedo de Demo, Terrantês, Alicante, Moscatel, Uva tinta, Gallega, Isabel – Casta americana, recentemente (1870 ?) importada, bago grande, cor preta, um só bagulho, casca grossa, doce e fresca, produz abundantemente...substituindo talvez o antigo Verdelho.”
          E a concluir diz o autor citado: Mais algumas diversidades de uva existem na ilha do Pico, tais como o Moscatel de Jesus – Diagalves – Uva do Monte – Ferral, etc. Mas isto mais por curiosidade do que propriamente para produção, como mais abundosas, eram essas diversidades antes da moléstia, em que os agricultores a par do lucrativo e geral Verdelho, gostavam de apresentar outras espécies, quase sempre para mesa.
        Hoje, as vindimas são poucas e as adegas passaram a ser vivendas de verão dos respectivos proprietários.
       

Ermelindo Ávila