segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Recordando Angra dos anos 20 (1)


NOTAS DO MEU CANTINHO

Estou longe do meu cantinho a recordar um passado distante, na pequena casa onde me alberguei estes dias de um verão ameno. O céu está límpido e o sol brilhante. Na minha frente as ilhas de São Jorge e da Terceira que se vêem distintamente.
Lembro-me de Angra, oitenta anos passados. Uma cidade calma e de vivência pacata. Quase não existia movimento interno a não ser nos dias de “São Vapor” – o “Lima” a meio do mês e o “São Miguel” (depois o “Carvalho Araújo”) no final do mês, na vinda de Lisboa e no regresso das “Ilhas de Baixo”, como eram designadas as restantes ilhas dos grupos Central e Ocidental, se bem que as Flores só eram visitadas no final do mês e o Corvo quatro vezes no ano.
Recordo-me da chegada a Angra do primeiro automóvel – uma baratinha, como diziam que, em certa ocasião, subindo a ladeira da Miragaia (para Santa Luzia) caiu num valado da empinada ladeira…
Uma moto, de escape aberto, todos os dias descia a rua da Sé vinda de S. Pedro, com o seu proprietário, comerciante de fazendas, com estabelecimento na Praça Velha. De resto os transportes eram feitos em carros de bestas, em charabans e coches, alguns com certo luxo, que ao domingo levavam as respectivas donas à Missa da Sé. Ficavam os veículos - coches luxuosos, normalmente puxados por fugosos cavalos, no adro da Sé aguardando que a dama cumprisse o preceito dominical. Os pobres animais não paravam a espantar os mosquedo que os atormentavam.
No cais eram os carros de um só boi, que durante o dia recebiam as mercadorias vindas de Lisboa e, no seu andar vagaroso e compassado, as conduziam aos estabelecimentos comerciais: José Júlio da Rocha Abreu, Basílio Simões e Irmãos e outros, depois de passarem pelo piquete da Alfandega, pois, enquanto estiveram em vigor as “barreiras alfandegárias” toda a mercadoria era sujeita ao pagamento de impostos, uma parte dos quais destinada às Câmaras Municipais que, neles, tinham as suas principais receitas. A cidade tinha boas indústrias e comércio.
Todavia, passados os dias de vapor, o movimento da cidade só se verificava quando havia tourada à corda, raramente de praça, em alguma “freguesia do campo”. Em certas touradas a cidade quase se despovoava.
Nos restantes dias eram os passeios ao Monte Brasil, à Memória, ao Cais da Alfandega ou ao Jardim Público, aliás, um excelente recinto arborizado e florido, onde apetecia estar durante as tardes de Primavera e Verão. À noite valia o Pátio da Alfandega, transformado em esplanada do Café Atlântico, que ficava superlotado.
Na realidade os habitantes citadinos quase não sentiam o isolamento. Tinham uma vida própria e uma convivência amistosa. Na sociedade principal era no Clube Musical Angrense que se reunia a velha aristocracia, que ainda existia, mas suas principais festas realizavam-se pelo Carnaval. Outras mais existiam como a Recreio, a Fanfarra, a Confederação Operária, e ainda outras que agora não recordo.
Angra possuía um escol de personalidades distintas. E só lembro o Dr. Luís Ribeiro, o Dr. Henrique Brás, o Dr. Henrique Flores e o Dr. Manuel de Sousa Menezes, o Dr. Manuel Almada, o Dr. Moniz Bettencourt, o Dr. Cardoso do Couto e o Dr. Garcia da Rosa, para só estes lembrar. Mas muitos havia a exercer as suas actividades liberais, comerciais e industriais.
O Teatro Angrense só exibia filmes mudos ao domingo. Por esses anos apareceu o filme sonoro “A Severa”, que constituiu um sucesso.
Notável era a Orquestra Henrique Vieira, como constituía um sucesso o Orfeão de Angra, do Pe. José de Ávila, sempre que se exibia em público.
A Livraria Editora Andrade era, nos Açores, um caso especial. Os poucos escritores açorianos a ela recorriam para a publicação dos seus trabalhos. Alguns, em número mais limitado, também utilizavam os serviços de “A União”.
Em chegando o mês de Maio esperava-se que chegassem os barcos do Pico nas suas viagens semanais, com notícias, passageiros e mercadorias – lenhas e vinhos e, mais no verão, ameixas e outras frutas. De início era a “Calheta”, uma lancha a motor que todas as semanas viajava do Faial, passando no Pico e São Jorge, para chegar a Angra, ao fim da tarde. E que agradável era vê-la costear o Monte Brasil, entrar na ampla baía para vir acostar ao cais da Alfândega, onde era aguardada por numerosos picoenses e jorgenses que em Angra residiam.
Sentado à sombra da pequena varanda, olhando o horizonte e descobrindo para Leste a Terceira distante, vivi os tempos da juventude que não volta, passados na Cidade (era assim que, para os picoenses da Ponta da Ilha, era conhecida Angra). Demais, hoje a cidade de Angra é tão diferente!
Engrade, 6-Setº-2012
Ermelindo Ávila


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