NOTAS DO MEU
CANTINHO
Estou
longe do meu cantinho a recordar um passado distante, na pequena casa
onde me alberguei estes dias de um verão ameno. O céu está límpido
e o sol brilhante. Na minha frente as ilhas de São Jorge e da
Terceira que se vêem distintamente.
Lembro-me
de Angra, oitenta anos passados. Uma cidade calma e de vivência
pacata. Quase não existia movimento interno a não ser nos dias de
“São Vapor” – o “Lima” a meio do mês e o “São Miguel”
(depois o “Carvalho Araújo”) no final do mês, na vinda de
Lisboa e no regresso das “Ilhas de Baixo”, como eram designadas
as restantes ilhas dos grupos Central e Ocidental, se bem que as
Flores só eram visitadas no final do mês e o Corvo quatro vezes no
ano.
Recordo-me
da chegada a Angra do primeiro automóvel – uma baratinha, como
diziam que, em certa ocasião, subindo a ladeira da Miragaia (para
Santa Luzia) caiu num valado da empinada ladeira…
Uma moto,
de escape aberto, todos os dias descia a rua da Sé vinda de S.
Pedro, com o seu proprietário, comerciante de fazendas, com
estabelecimento na Praça Velha. De resto os transportes eram feitos
em carros de bestas, em charabans e coches, alguns com certo luxo,
que ao domingo levavam as respectivas donas à Missa da Sé. Ficavam
os veículos - coches luxuosos, normalmente puxados por fugosos
cavalos, no adro da Sé aguardando que a dama cumprisse o preceito
dominical. Os pobres animais não paravam a espantar os mosquedo que
os atormentavam.
No cais
eram os carros de um só boi, que durante o dia recebiam as
mercadorias vindas de Lisboa e, no seu andar vagaroso e compassado,
as conduziam aos estabelecimentos comerciais: José Júlio da Rocha
Abreu, Basílio Simões e Irmãos e outros, depois de passarem pelo
piquete da Alfandega, pois, enquanto estiveram em vigor as
“barreiras alfandegárias” toda a mercadoria era sujeita ao
pagamento de impostos, uma parte dos quais destinada às Câmaras
Municipais que, neles, tinham as suas principais receitas. A cidade
tinha boas indústrias e comércio.
Todavia,
passados os dias de vapor, o movimento da cidade só se verificava
quando havia tourada à corda, raramente de praça, em alguma
“freguesia do campo”. Em certas touradas a cidade quase se
despovoava.
Nos
restantes dias eram os passeios ao Monte Brasil, à Memória, ao Cais
da Alfandega ou ao Jardim Público, aliás, um excelente recinto
arborizado e florido, onde apetecia estar durante as tardes de
Primavera e Verão. À noite valia o Pátio da Alfandega,
transformado em esplanada do Café Atlântico, que ficava
superlotado.
Na
realidade os habitantes citadinos quase não sentiam o isolamento.
Tinham uma vida própria e uma convivência amistosa. Na sociedade
principal era no Clube Musical Angrense que se reunia a velha
aristocracia, que ainda existia, mas suas principais festas
realizavam-se pelo Carnaval. Outras mais existiam
como a Recreio, a Fanfarra, a Confederação Operária, e ainda
outras que agora não recordo.
Angra
possuía um escol de personalidades distintas. E só lembro o Dr.
Luís Ribeiro, o Dr. Henrique Brás, o Dr. Henrique Flores e o Dr.
Manuel de Sousa Menezes, o Dr. Manuel Almada, o Dr. Moniz
Bettencourt, o Dr. Cardoso do Couto e o Dr. Garcia da Rosa, para só
estes lembrar. Mas muitos havia a exercer as suas actividades
liberais, comerciais e industriais.
O
Teatro Angrense só exibia filmes mudos ao domingo. Por esses anos
apareceu o filme sonoro “A Severa”, que constituiu um sucesso.
Notável
era a Orquestra Henrique Vieira, como constituía um sucesso o Orfeão
de Angra, do Pe. José de Ávila, sempre que se exibia em público.
A Livraria
Editora Andrade era, nos Açores, um caso especial. Os poucos
escritores açorianos a ela recorriam para a publicação dos seus
trabalhos. Alguns, em número mais limitado, também utilizavam os
serviços de “A União”.
Em
chegando o mês de Maio esperava-se que chegassem os barcos do Pico
nas suas viagens semanais, com notícias, passageiros e mercadorias –
lenhas e vinhos e, mais no verão, ameixas e outras frutas. De início
era a “Calheta”, uma lancha a motor que todas as semanas viajava
do Faial, passando no Pico e São Jorge, para chegar a Angra, ao fim
da tarde. E que agradável era vê-la costear
o Monte Brasil, entrar na ampla baía para vir acostar ao cais da
Alfândega, onde era aguardada por numerosos picoenses e jorgenses
que em Angra residiam.
Sentado à
sombra da pequena varanda, olhando o horizonte e descobrindo para
Leste a Terceira distante, vivi os tempos da juventude que não
volta, passados na Cidade (era assim que, para os picoenses da Ponta
da Ilha, era conhecida Angra). Demais, hoje a cidade de Angra é tão
diferente!
Engrade,
6-Setº-2012
Ermelindo
Ávila
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