sábado, 26 de dezembro de 2015

Gloria in Excelsis Deo

Notas do meu cantinho
       
                                            Aos meus Netos e Bisnetos
                 
       Estava-se na véspera do Natal. Em casa do Mário, um miúdo à volta dos seis anos, havia uma azáfama grande a preparar a árvore do Natal, o Presépio e a casa, para o dia da Festa.  O Mário e os irmãos mais velhos, pois ele era o menino da Família, estavam cansados de trazer para a árvore os enfeites, e para o Presépio as pedras queimadas, os musgos e as outras ervinhas ajudando, assim, a Mãe a armar esses dois sinais festivos. O Mário estava cansado e logo ao anoitecer adormeceu. A Mãe tinha pensado em levá-lo à Missa do Galo, mas o miúdo não se aguentava com o sono e teve de ser metido na cama. Os outros dois manos prepararam-se para acompanhar os pais, mas o Mário não mais acordou e a solução foi deixá-lo a dormir. Não havia perigo algum pois ele não tinha por hábito acordar durante a noite e, demais, o tempo, apesar de ser Inverno, estava maravilhoso.
          Era meia noite. No campanário da Igreja Paroquial, os sinos repicavam festivamente. A igreja iluminara-se com grande esplendor. O grupo coral cantava o hino litúrgico Glória a Deus nas Alturas e paz na terra aos homens de boa vontade!
          Ao som alegre dos sinos o Mário acordou e chamou pela Mãe, mas esta não lhe respondeu. Viu-se só, àquela hora adiantada da noite, e não sabia o que fazer. Levantou-se e foi até à janela. Olhou curiosamente e viu ao longe a igreja toda iluminada e os sinos em contínuos toques festivos. Vestiu-se,  saiu para a rua, e foi andando até chegar junto da Igreja toda iluminada e entrou.
          No altar o sacerdote celebrava a Missa. A capela continuava a cantar o hino litúrgico. As pessoas, com ar alegre, ainda se cumprimentavam. O Mário foi andando pela igreja dentro e encontrou os Pais e os irmãos mais velhos que assistiam à chamada “Missa do Galo”. Naturalmente, ficaram surpreendidos com a presença do filho e irmão.
          Acolheram-no, carinhosamente, e envolveram-no numa manta, pois ele já acusava o frio que se sentia.
          Terminaram as cerimónias e o celebrante, depois de dirigir uma última saudação aos assistentes, retirou-se para a sacristia. Os miúdos correram, imediatamente, para junto do Presépio a admirar as figuras, que caminhavam pelas veredas e atalhos dos pequenos montes, e a pequena cabana onde estavam Maria e José e um Menino reclinado numa manjedoira, em frente de dois animais: a vaca e o burro. Entretanto, o povo ia saindo a pouco e pouco para as suas casas. Juntavam-se as famílias e os amigos saudavam-se, alegremente: “Boas Festas, Boas Festas!” – e caminhavam aos ranchos. O escuro da meia noite e o frio habitual do mês de Dezembro não aconselhavam que as pessoas se demorassem nos percursos.
          Rapidamente, todos chegaram às suas habitações. A casa do Mário iluminou-se e, na sala maior, uma pequena árvore que a mãe e os irmãos  haviam ali colocado, sem que ele se apercebesse quando saíu da cama, para ir junto da janela e descobriu a igreja iluminada; junto dela  vários pacotes, atados com fitas de cores e o nome de cada membro da família. Depois veio o grande momento: ao Mário entregaram um grande pacote que ele, sofregamente, desfez e, aos gritinhos, encontrou um pequeno avião, “tripulado” por dois “aviadores”. Rodando uma pequena chave ele iluminava-se e as hélices começavam a girar. Quando atingiam maior velocidade o pequeno avião levantava voo para descer um pouco além. Foi a grande surpresa e a alegria maior do Mário.
          Seguiu-se a habitual consoada, mas o Mário nem disso se interessou. E quando foi novamente para a cama, apesar da recomendação da Mãe que lhe havia retirado o precioso brinquedo, nem dormia a pensar na “viagem” que, no dia  seguinte, faria no seu avião. Por fim, o sono chegou. No dia seguinte, quando acordou, voltou a admirar, com enorme alegria, a oferta do Pai Natal. De todos os brinquedos que lhe ofereceram naquele dia nenhum outro foi capaz de despertar a alegria e o entusiasmo que lhe proporcionava a posse de tão interessante brinquedo - uma coisa rara que a poucos era dado usufruir.
          As festas continuaram. Os Pais e irmãos do Mário mantinham os velhos costumes. Ao almoço do dia de Natal tiveram como convidados os seus pais e outros familiares. Não faltaram o “bolo do Natal” e outros manjares tradicionais. A “caçoilha” foi o prato forte, como era costume na família. Foi, na realidade, um grande dia.
          Mas, para o nosso “herói”, nada mais lhe interessou. O avião, que subia e descia por alguns instantes, era o seu enlevo, a sua grande alegria.

Natal de 2015

Ermelindo Ávila

PE. DOMINGOS F. R. ANGELO

A MINHA NOTA

Recordo com o devido respeito a personalidade inconfundível do Padre Ouvidor  Domingos Ferreira da Rosa Ângelo. Lembro-o ainda quando paroquiava Santa Cruz das Ribeiras, principalmente agora que a respectiva paróquia vai celebrar com brilhantismo, como é tradição daquele lugar, o primeiro centenário da erecção do antigo curato a paróquia.
O Padre Domingos havia sucedido, ao antigo Cura, Pe. José Silveira Peixoto, natural desta vila e que ali fora colocado em 10 de Abril de 1899, passando, depois, à situação de manente.
O Pe. Domingos, como sempre foi conhecido, em 1916, entendeu elevar o curado a Paróquia. O processo foi organizado com a aquiescência do Vigário de S.ta Bárbara, Pe. Manuel José Alves, natural das Velas, a cuja paróquia estava sujeito o Curato de Santa Cruz, e foi este que, com o seu parecer, o enviou à Cúria Diocesana, não sem informar que “o povo não tem por costume receber bons despachos” o que não deixou de causar veemente protesto do cabido.
O processo foi despachado favoravelmente e o P. Domingos nomeado Vigário da nova paróquia, onde se conservou até 1927, ano em que foi transferido para Vigário e Ouvidor da Matriz de S. Roque do Pico, onde se manteve até ao falecimento .
Excelente músico, com voz brilhante de soprano, estava presente nas principais festas da ilha, quer como músico notável a auxiliar as respectivas capelas, quer como orador sacro, cujos sermões eram verdadeiras peças oratórias.
Conheci-o de perto e ainda recordo a sua estada em S.ta Cruz das Ribeiras e, depois, em S. Roque do Pico. É que ele, amigo íntimo do Pároco e Ouvidor do Pároco das Lajes, não faltava aqui nas festas maiores, principalmente a de Nossa Senhora de Lourdes e da Semana Santa.                                                                                                                                                                            
Quando se instituiu a festa de Santa Teresinha, após a sua canonização em  1925, o Pe. Domingos era o orador permanente, assim como o ouvidor das Lajes não faltava à festa instituída, depois, na Matriz de S. Roque.
Raramente, o P. Domingos se fazia substituir pelo seu colega e amigo, Pe. José Maria Fernandes, apesar deste ser igualmente um excelente orador sacro.
O P. Domingos, como atrás se refere, foi transferido de Santa Cruz para S. Roque, onde se conservou até ao falecimento. Como notável músico que era, foi o quarto regente da Filarmónica de S.ta Cruz, Recreio Ribeirense, até à transferência para a Matriz de S. Roque.
Dele escreve o P. José Idalmiro Ávila Ferreira, também natural de S. Roque e seu pároco e ouvidor: Difícil ao tempo encontrar alguém que se disponibilizasse a assumir esse cargo (Presidente da Câmara) pois ele teria de ser exercido gratuitamente e com a agravante de a ele estar anexa a administração do Concelho, com os poderes policiais alargados à prisão dos supostos delinquentes, o que naturalmente trazia sérios dissabores numa terra onde todos são conhecidos, muitos deles parentes, vizinhos e amigos...(1)
O exercício do cargo acarretou-lhe sérios dissabores de que se livrou com a ajuda dos seus paroquianos, numa ocasião em que, falando em momento solene, respondendo ao Governador do Distrito, que visitava o concelho, não se escusou de afirmar, e cito:
“Pois, Exa., o sentimento generalizado do meu povo do qual faço eco, é este: Isto não é governo de Deus, mas do diabo...) (2)
E mais se poderia dizer do P. Domingos Ferreira da Rosa Ângelo, uma das mais relevantes figuras da Igreja, no século que passou. O referido basta para pôr em destaque tão distinta personalidade eclesiástica e civil.

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1) FERREIRA, Idalmiro, Esta Terra – Esta Gente, 2002, pág,245.
2) idem, pag. 246

Lajes do Pico, 26-11-2015
Ermelindo Ávila



A FESTA QUE O GUIDO NÃO TEVE


          Guido foi um menino feliz na sua infância e adolescência. Os pais eram pessoas da sociedade, na cidade em que viviam. Eles e os irmãos tinham uma vida sem dificuldades. Na escola distinguiam-se pelo seu trajar, pelos utensílios que utilizavam. Eram, mesmo, bastante considerados e estimados pelos professores e companheiros. Pois se nada lhes faltava...
          Viviam numa das cidades mais prósperas do seu País. O pai era um industrial rico e a Mãe professora num colégio estrangeiro. Viviam numa excelente moradia, ricamente mobilada e a mesa era abundante e servida por pessoal especializado.
Mas um dia, sem saber como, a infelicidade bateu-lhes à porta. Tudo se transformou e o Guido viu-se numa situação muito triste: um atentado terrorista levou-lhe os pais e os irmãos.
Na cidade rebentou, entretanto, uma revolta entre os diversos partidos políticos. Reforçou-se a Polícia, mas foi incapaz de suster os revoltosos. Vieram reforços do Exército e começaram a bombardear a cidade para repor a ordem. Os canhões, as metralhadoras, as armas ligeiras, os carros de assalto, toda a máquina de guerra foi posta a funcionar. A pouco e pouco foram atingidos edifícios, os habitantes foram sendo mortos e as ruas ficaram intransitáveis com os escombros das casas demolidas pelo fogo da artilharia. O fogo começou a propalar-se e não houve corporação de bombeiros que fosse capaz de extingui-lo.
Os que escaparam, conseguiram fugir para os campos. Separaram-se e nunca mais se encontraram.
Guido, encontrando-se sozinho, caminhou por terra dentro. Há dias que andava a divagar, sem encontrar alguém que o acolhesse. As roupas iam ficando esfrangalhadas. A fome era muita e valia-se da fruta que, aqui e ali, encontrava em alguns campos de fruta, por onde passava. Certo dia, porém, ao cair da noite, achou-se numa pequena povoação.
Aproximou-se de uma casa modesta, bateu à porta e gritou que o acudissem. Não tardou o socorro da velha dona da casa, uma senhora, já entrada em idade, que vivia só, pois o marido tinha falecido e os filhos haviam emigrado. Recebeu o pobre pedinte e indagou da sua vida. Ficou triste e condoída com a situação calamitosa que o Guido lhe contou. Acolheu-o com carinho, lavou-o, arranjou-lhe umas roupinhas que ainda guardava dos filhos e preparou-lhe uma singela refeição quente.
Quando o Guido se encontrava algo reconfortado, a Senhora quis aprofundar a “história”. A custo, emocionado e muito saudoso dos pais e irmãos, contou-lhe como tudo acontecera.
Estava-se na semana do Natal. A mãe já havia preparado a casa, armado o Presépio e coberto de luzes e outros adereços, a tradicional árvore do Natal. Tudo, porém, desaparecera com os bombardeamentos. A casa transformou-se num montão de ruínas, sem nada que se aproveitasse, e os pais e irmãos, aqueles que não puderam fugir, cadáveres cobertos pelos escombros do prédio. E outras mais famílias havia naquele triste estado. Até a igreja da sua paróquia fora atingida. Uma grande parte da cidade estava no chão.
Os que escaparam à tremenda tragédia, diziam que eram actos de terrorismo, praticados por pessoas estranhas à cidade. Mas ele, pequeno como era, nem sabia o que era o terrorismo.
A Senhora, ouviu a triste e horripilante narração e tudo procurou fazer para que o Guido esquecesse um pouco o seu drama e tivesse uma festa de Natal, com algum conforto.
E assim aconteceu. Na noite de Natal o Guido, ao ir deitar-se, encontrou, no quarto onde havia sido albergado, um pequeno altar com a imagem do Menino Jesus, ao lado Sua Mãe e S. José, e, junto da janela, uma arvorezinha enfeitada com fitas coloridas. Debaixo dela, no chão, uma pequena caixa com um carrinho de corrida e dentro dele um bilhete onde alguém, naturalmente a senhora que o acolhera, havia escrito: Presente do Menino Jesus.

          Nesta Festa que se aproxima quantos mais Guidos, não haverá por esse mundo que se diz civilizado? Encontrarão eles uma mãe adoptiva que os acolha maternalmente ?

Natal de 2015


Ermelindo Ávila

OS ANTIGOS TRAJOS

NOTAS DO MEU CANTINHO

OS ANTIGOS TRAJOS

          Os picoenses – ou picarotos, como queiram -  sempre usaram, no decorrer dos tempos, um trajo característico, mas não tanto como alguns passaram por vezes, exageradamente, a descrevê-lo.
Os irmãos Joseph e Henry Bullar, que por aqui andaram a meados do século XIX,  deixaram uma descrição algo picaresca do homem do Pico que  ao Faial se deslocava a negociar os produtos da terra.
E assim o descrevem: Alguns aldeões do Pico vestem-se inteiramente de vermelho. Usam jaqueta curta de estamenha, vermelha, colete e calções do mesmo tecido e cor, com polainas abotoadas sobre os pés. Estes andam descalços ou cobertos de sandálias de coiro (onde não raras vezes ficaram restos do pelo do boi) por sobre o dedo grande. Todavia não  deixaram de lhes dar o  trato de “gentleman da velha guarda”.
Andarem os trabalhadores da terra, ou agricultores, de sandálias ou “albarcas” de coiro de boi mal curtido ou, mais tarde, de “albarcas” de borracha de pneu, quando começaram a aparecer os automóveis já a meio do  primeiro quartel do século XX, conheci-os eu, mas nunca de trajos de cor vermelha.
Os agricultores vestiam , geralmente, calças de cotim e camisas e casacos (sueras ou frocas) de cor cinzenta, tecidos de lã de ovelha, nos teares domésticos.
Depois, quando começaram a vir da América do Norte as “sacas de roupa”, enviadas pelos parentes (irmãos, filhos, amigos ou conhecidos,) passaram a usar as calças ou alvaroses (calças com uma pala a cobrir o peito) de angrim, que hoje são um luxo para as senhoras.
Curioso que os trabalhadores rurais, quando andavam pelos campos, amarravam um atilho na altura dos joelhos, como medida de precaução, para evitar que o pó da terra lhe subisse pelas pernas.
A camisola de lã não era dispensada, mesmo no verão, embora provocasse grande calor, pois absorvia a transpiração e evitava as constipações.
Para assistir aos actos religiosos o picoense, de qualquer categoria social, vestia o seu fato preto e punha gravata – o fato domingueiro como diziam.
O trajo da mulher era bastante diferente daquele que agora usam.  Durante a semana trajava saia abaixo do joelho e, normalmente, calçava galochas com piso ou sola de madeira de cedro por ser leve e nada porosa, Vestia uma blusa de tecido leve com manga a cobrir todo o braço, e, na cabeça, usava lenço de qualquer cor ou chapéu de palha no verão. Sobre os ombros um xaile de qualquer cor, conforme as circunstâncias.
Ao domingo, as mais jovens, usavam vestido de tecido leve, para o que havia costureiras em quase todas as freguesias, e punham chapéu, de diversos feitios conforme a moda corrente. À igreja nenhuma pessoa do sexo feminino ia sem ter a cabeça coberta. Hoje é ao contrário: as mulheres baniram o chapéu e os homens, com chapéu ou boné entram em qualquer parte.
Se estava de luto ou tinha marido ausente (nesses tempos o marido emigrava por poucos anos) o xaile era de cor preta. O luto durava meses ou ano, conforme o grau de parentesco com o falecido, mas se era marido ou mulher o luto durava a vida inteira a menos que mudasse de estado.
Uma das minhas bisavós - faleceu no ano em que atingiria um século – dizia-me que usava sete saias, que iam dos joelhos aos pés. A saia de fora era provida de algibeiras. Quando estas não existiam, tinha uma bolsa pequena, ou matrona, que ligava à cintura, onde guardava os “cobres” e pequenos objectos. 
De registar que, normalmente, quando algum indivíduo das freguesias, durante a semana, descia à Vila para tratar de qualquer assunto, ou até pagar as contribuições ao Estado, vinha com trajo domingueiro, pelo respeito que lhe mereciam as repartições públicas e os respectivos funcionários.
As pessoas cumprimentavam-se quando se cruzavam na via pública, e os mais novos tinham por obrigação ou hábito tirar o chapéu ou boné quando se cruzavam com qualquer mais idoso e não só.
Os hábitos e costumes eram bastante diferentes e o respeito pelos parentes e/ou mais idosos uma obrigação.
 Com certeza que os irmãos Bullar veriam os picoenses e açorianos de maneira diferente...



Lajes do Pico,
22-XI-2015

Ermelindo Ávila