terça-feira, 29 de novembro de 2011

NOVEMBRO


Nunca me agradou este mês. Sempre o achei cheio de tristeza e de lugubridade. O mês em que se recorda, com um misto de saudade, aqueles que partiram e não voltarão.

Passamos nas ruas e já não os encontramos. Em lugar deles topamo-nos com caras desconhecidas, muitas delas nem de cá são e que passam indiferentes, ao largo.

O mês de Novembro, antes do Concílio Vaticano II era um mês de luto e de tristeza. E isso ficou-me para o resto da vida. Nas igrejas, celebravam-se ofícios fúnebres, ante um cadafalso coberto de panos negros. Os próprios paramentos usados pelo clero celebrante eram pretos. Tudo envolto num ambiente tétrico, que causava pavor aos miúdos e contribuía para a tristeza que se estampava nos rostos dos adultos.

Actualmente desapareceram os paramentos pretos. Foram substituídos pelos roxos que amenizam um pouco o ambiente das celebrações litúrgicas.

Os altares eram enfeitados com crisântemos, normalmente roxos, que, mesmo assim, eram retirados nos dias das celebrações fúnebres. E, nesses dias, a Igreja recordava a antífona própria do tempo: Lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar.

Libera animus omnium fidelium defunctorum de poenis inferni. Livrai-nos das fauces do leão, não as engula o abismo e não caiam nas profundezas tenebrosas” .

A Igreja continua a lembrar os mortos e a orar pelas suas almas. Normalmente, os cristãos têm uma particular devoção às almas do Purgatório. Recorda-as com sufrágios especiais neste mês que lhes é dedicado de uma maneira especial.

É por isso que aqueles temores da infância e juventude já desapareceram há muito. Quando a realidade da vida é compreendida, de uma maneira especial, encaramo-la com certa naturalidade e quase, senão todos os meses passam a ser iguais no recordar aqueles que nos deixaram para sempre.

Se os lembramos a quase todos os momentos da vida que nos resta, não deixamos de implorar para eles a Misericórdia divina!...

Bem sabemos e respeitamos os sentimentos daqueles que estão convictos de que a vida acaba com a morte, mas, por isso mesmo, também temos o direito de esperar que respeitem e tolerem os nossos sentimentos no que respeita à vida que não se acaba mas apenas se transforma com a morte corporal.

Para os cristãos este mês de Novembro é um mês especial dedicado particularmente aos fiéis defuntos. Eles também não se esquecem de nós. Retribuamos-lhes, generosamente com nossas preces, com esmolas e actos de generosidade a tantos carenciados, que, nestes tempos de crise, por aí vagueiam à espera de algo que lhes mate a fome ou lhes permita adquirir os remédios de que carecem. E são tantos!

Vila das Lajes,

26 Outº. 2011

Ermelindo Ávila

OS BOIS DA PORTA


Hoje já não existem os chamados “bois da porta”, aqueles bovinos que eram estabulados nas “lojas da atafona” das próprias habitações ou nas “casas de pasto” ou de abegoaria juntas às residências dos lavradores. Deixaram de ter utilidade, com a introdução das máquinas. Aqui há vários anos, eram esses animais que faziam a grande maioria dos trabalhos domésticos: lavravam os terrenos para as sementeiras, carreavam as lenhas e os produtos agrícolas e moíam nas atafonas. Havia deles que, além desses serviços, prestavam outros de encomenda, como carrear as cargas dos cais de desembarque para os armazéns e até as malas do correio. Animais mansos e pachorrentos, eram tratados por nomes que eles conheciam: o Brilhante, o Cupido e outros mais.

Verdade que os animais conheciam já os percursos e nem careciam da orientação dos condutores. No entanto, os donos com eles falavam como se fossem companheiros de jornada.

Lembro-me do João Moniz que, além de levar no seu carro mercadorias para os comerciantes até à Ponta da Ilha, tinha a seu cargo o transporte da mala do correio. O Manuel Francisco de Simas (o Grande) e o Manuel Inácio, da freguesia de São João que, quase diariamente, vinham à vila com os seus carros de bois transportando lenha (achas) para consumo doméstico e daqui levavam encomendas diversas para a freguesia. Homens bons, sérios e simpáticos que gozavam da maior estima dos lajenses.

Todavia, dois casos houve que tiveram consequências desagradáveis. Um deles causou a morte do dono. Este trazia o boi pela corda, das terras do alto para a residência, na vila. A certa altura lembrou-se de fumar. Prendeu a corda no pulso para fazer o cigarro de tabaco da terra, em folha de milho. Parece que tropeçou numa pedra da calçada do caminho, ao que se supõe, e caiu. O animal continuou a andar e foi arrastando o homem pela calçada, o qual não teve possibilidade de mandar parar o boi. Infelizmente, ninguém presenciou o infausto acontecimento e o boi só veio a parar junto da residência, trazendo o dono preso pela corda e já sem vida.

Um outro caso, embora de menores consequências. Na loja da casa de moradia estava montada a atafona e dois bois ali pernoitavam junto das respectivas manjedoiras. Certo dia um deles rebenta a trela que o prendia ao pau da manjedoira e ataca o outro. O dono, sentindo o barulho da refrega, desce à loja e, fiado na sua força, tenta separar os animais. Resultado: foi apertado entre as cabeças dos dois animais que lhe provocaram o estrangulamento de uma hérnia. Não morreu, mas ficou quase inválido o resto da vida.

Em certa noite de inverno, bastante escura, pois a vila não tinha iluminação pública - aquela que existira a petróleo fora destruída pelo Mestre Quim, um doente mental que, quando solto, tudo desfazia - um miúdo de cerca de sete anos de idade, desceu a escada da residência e encaminhou-se para a rua. Nessa altura passava um boi da porta, que era trazido pelo dono para estabular na loja da atafona da respectiva residência, afim de, na madrugada do dia seguinte, “fazer a moenda” de milho para o dia. O miúdo, na correria, foi de encontro ao animal e caiu. Entretanto o boi, que era manso, deu um salto e deixou a criança deitada no chão mas sem sofrer qualquer ferimento. Um sorte!

Valerá a pena recordar estes acontecimentos? Outros mais devem ter existido. Creio que não ficará mal. Demais não identifico as pessoas e podia fazê-lo.


Vila das Lajes,

10 de Nov.º de 2011.

Ermelindo Ávila

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A MARÉ

Fernão Alvares Evangelho, o primeiro homem que aportou à Ilha, tomou-a pela parte Sul e saltou no Penedo Negro que fica ao fundo da enseada do Castelete, junto à encosta da ilha. Afinal, uma história muito antiga e que todos conhecem.

Do Castelete para o sul fica a Maré, pequeno lago que o mar forma e que ainda hoje se conserva, apesar das obras que em seu redor se têm realizado: pelo leste a muralha de defesa e pelo norte e leste a muralha que a rodeia e que evita que o mar, quando embravecido, caminhe pela ruas circundantes, invadindo a Vila, como ainda acontecia até meados do século XX.

“O espectáculo da planície magnífica suscitou na mente dos povoadores um sonho belo, que as más condições do porto não deixaram realizar na plenitude da aspiração.

A vila “não se construiu ao acaso: assentou-se num plano, fixou-se a planta – porque nos mais antigos documentos, como são instituições de vínculos e outros, tenho encontrado, em confrontações de propriedades, quase todos os nomes das ruas da vila, incluindo a da Barra, a partir das proximidades de André Rodrigues e cuja utilidade hoje se não compreende, mas que, como todas as coisas, teve a sua razão de ser, quando a Barra serviu de porto. “ (1)

E a leste da Maré está o primeiro templo da ilha: “catedral ingénua, tendo por abóbada palhas puríssimas, talvez do trigo que deu a primeira hóstia nela consagrada” e onde “frei Pedro Gigante abençoou as uniões do amor... e, num dia memorável que as gerações esqueceram, aí celebrou solenemente o baptismo do primeiro filho da nova pátria”. (2)

Junto à dita muralha, construída nos anos Sessenta, para suporte do ramal que ligou a parte Sul da Vila à Estrada Regional, ainda se pode descobrir um troço do antigo caminho, em calçada à romana, e onde existem, bem visíveis, os sulcos dos carros de bois que por ela transitavam, quando seguiam, pela antiga “Ladeira da Vila”, às zonas agrícolas, ou no velho caminho que dava volta à Ilha.

Foi naqueles lados que a vila principiou, muito embora Fernão Alvares, primeiro povoador tenha construído sua moradia junto à ribeira que durante muitos anos teve o seu nome e que depois passou a chamar-se “Ribeira da Burra”. A vila “começou junto à ermida de S. Pedro, onde becos estreitos e tortuosos bem claramente indicam (indicavam...) o início da povoação, confirmando a tradição e a história.” (3)

A Maré é um lago calmo e, nas tardes amenas, nela se espelham os raios do Sol no poente. Empresta, pois, à zona um panorama maravilhoso.

Pode o mar embravecido bater na costa e entrar pelo Oeste no grande espaço que é denominado “Juncal”, todavia a Maré, normalmente, está calma. É um viveiro onde se desenvolvem as mais diversas espécies piscícolas. E raramente são pescadas. Só ali conheci, há muitos anos, um pequeno barco – dori – que pertenceu a Manuel Vieira (Chiné) e que, praticamente, era utilizado no apoio à rede (ou estremalho) que nela se deitava no Inverno, quando o mar não permitia que os barcos de pesca saíssem do porto. Na Maré apanhava-se normalmente peixe miúdo.

Mas, já anteriormente, falei de pescas, e basta.

A Maré serve como “espelho” poético a quem a contempla, extasiado, com o Castelete ao fundo a servir-lhe de guarda avançado aos mares do sudoeste. Um espectáculo único por estes lados...

Pelo Oeste há o chamado “mar da Barra” a única “praia” de banhos ou zona balnear que a vila possui. Encontra-se quase no seu estado primitivo, pois as obras que ali se executaram pouco beneficiaram a utilização. E é pena, pois podia ser um bom local para banhos, hoje tanto em voga.

Antigamente, quando a Maré estava no seu estado primitivo, na baixa-mar ficava com uma zona a descoberto e era aproveitada para os pescadores colherem o caranguejo e o camarão miúdo para isca na pesca do alto. Hoje nem sei o que acontece.

Na Maré, se não erro, podia praticar-se diversos desportos à vela e a remos. Demais, parece que as águas não são próprias para banhos, dada a influência das águas doces que brotam da terra. Certo é que, antes de haver água canalizada, muitas pessoas iam à Maré, junto da margem Leste, lavar a roupa em “regos” que abriam na baixa-mar e donde brotava água, se não doce ao menos salobra. E era aí que algumas mulheres, até vindas das Terras, lavavam as roupas da semana. O mesmo acontecia na “Mouraria”, a Norte, no sopé do monte de Santa Catarina. E igualmente na Ribeira do Meio, onde ainda existem o poço e as pias de lavagem ao lado, um arranjo de 1942 e que foi de grande utilidade para a população da Almagreira, Ribeira do Meio e Vila. Com a montagem da rede de distribuição de água, na década de sessenta do século passado, tudo passou ao esquecimento.

Hoje a zona terrestre da Maré está completamente urbanizada, muito embora a lagoa conserve o seu aspecto primitivo. Bom seria que os restos da calçada que ainda existe e que tem continuação no princípio da antiga “Ladeira da Vila”, fossem devidamente acautelados, pois é o que resta, por aqui, do secular caminho em volta da Ilha o qual, para os lados do Norte, das Lajes à Madalena, tinha a denominação de “Caminho dos ilhéus”.

E, já agora, lembro os antigos poços de maré que ainda existem junto da ermida de São Pedro, nas cercanias da Maré e na Rochinha, perto do antigo campo de jogos. (Outros poços públicos, houve que se “sumiram” na voragem dos tempos. E refiro públicos porque quase todas as casas da vila possuíam poços de maré.

São marcos históricos de uma vivência de trabalhos e canseiras, quando as águas das chuvas eram somente captadas e guardadas em grandes talhas, nas casas principais. Os tanques ou cisternas vieram muito mais tarde, praticamente no século XIX. Umas pequenas lápides indicativas e a conservação dos “bucais”, devidamente tapados (como alias acontece nos poços da Rochinha e de São Pedro), bastavam para assinalar esses verdadeiros monumentos históricos.


_____________

1) F.S.Lacerda Machado – “História do Concelho das Lages” . 1936 .

2)ibidem

3)ibidem


Vila das Lajes,

19 de Outº de 2011

Ermelindo Ávila

sábado, 5 de novembro de 2011

AS CASTANHAS

A MINHA NOTA




Quando a vida era risonha e bela, havia tradições e costumes que se respeitavam e cumpriam nas épocas próprias. É o caso das castanhas que hoje trago à ribalta.

Por estes lados do Sul da Ilha o castanheiro não medrava, capazmente. Desenvolvia-se a árvore, mas os frutos eram mesquinhos. Daí que se tornasse necessário procurá-las nos sítios próprios, neste caso a Norte da Ilha.

O comércio importava a castanha do continente, mas não era igual à que se produzia nestas ilhas. Tinham um sabor diferente...

Em chegando às proximidades da comemoração de Todos os Santos, reuniam-se as moças destas bandas em ranchos, e, pelos caminhos da Serra, iam até à Prainha do Note, comprar castanhas, pois por ali os castanheiros produziam bons frutos. Seguiam pelo “caminho dos burros”, descansavam muitas vezes às “mesas”, para chegarem ao destino nas primeiras horas da manhã. Ali compravam uns meios alqueires de castanhas ou trocavam por produtos de cá, e voltavam, chegando a casa ao entardecer. Uma viagem longa mas alegre, pelo convívio e pela amenidade do tempo de Outono, que muito classificavam de a “Primavera das Ilhas”.

Como anteriormente já referi, a Prainha fica no outro lado da Ilha. Lajes e Prainha são as duas freguesias mais próximas. E quem refere as Lajes diz, normalmente, Almagreira, Silveira e Ribeira do Meio. É só atravessar a Serra e já se está num ou noutro lado.

Disse produtos de cá mas não muitos. A Prainha sempre foi uma das zonas da Ilha onde se produziram bons cereais, especialmente o trigo e o milho.

Infelizmente, esses cereais vão sendo abandonados. Já não se encontram as cearas de trigo, onde geralmente as raparigas passavam as manhãs e o entardecer a espantar a praga,( canários, principalmente, pois os pardais apareceram em intensidade a meados do século passado), que caía sobre as searas de trigo. O trigo, que fez parte da diminuta bagagem dos povoadores, foi o primeiro cereal produzido na ilha. O milho só apareceu mais tarde, aí por 1670, trazido por Denis Gregório de Melo, capitão -general dos Açores. Dada a sua larga produção passou a ser o cereal preferido na alimentação do homem, deixando o trigo de ser cultivado em grandes quantidades. Por estes lados, era normal intensificar-se a sementeira de trigo quase só nos anos em que se tinha o encargo da função em louvor do Divino Espírito Santo.

Actualmente, o milho passou a ser quase só cultivado para alimento dos bovinos, no Inverno, depois de mecanicamente ensilado. Contudo vale a farinha de trigo importada.

E ficamos com as castanhas. Não passam de um fruto que, depois de assado ou cozido, serve de sobremesa nas refeições da época, ou nas adegas, de aperitivo às provas do vinho novo.

Vila das Lajes,

Outubro de 2011.

Ermelindo Ávila

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

PÃO POR DEUS

Uma tradição antiga que se mantém e que até há pouco era praticada somente por crianças que, de porta em porta, iam pedindo, numa cantilena habitual, “pão por Deus, por amor de Deus.

Hoje é diferente. Não apenas aqui, mas por esse Portugal fora. A fome, que actualmente se denomina de “crise”, porque dela é resultante, está a atingir uma parte avantajada das gentes portuguesas. E chegou a estas ilhas. Impressionante foi ver, aqui há dias, p.e., no adro da Sé de Angra, a distribuição de um pratinho de sopa às muitas pessoas que lá apareceram. E quantos casos semelhantes acontecem, felizmente digo, por esse País fora. E ainda bem, pois será a única refeição que muitos terão diariamente. Mas é sinal de que o País caiu, repentinamente, na miséria e não há quem lhe acuda, nem os responsáveis são identificados...

Já escrevi ao contrário daquilo que hoje aqui trago. Durante vário anos, nesta ilha não havia quem estendesse a mão à caridade pública. Hoje alguns não o fazem por vergonha.

Os investimentos públicos estão quase paralisados e eram eles que garantiam o salário diário a muitos operários dos diversos sectores.

Deixando de haver obras, onde poderão os operários ir buscar o salário para o sustento diário dele e da família?

Para alguns valem as vacas. Mas nem todos têm essa actividade, nem as terras que estão sendo utilizadas permitem o aumento das manadas.

Há, por aí, muitos hectares de terrenos incultos e ocupados por arvoredo selvagem sem interesse para ninguém. No entanto parece que, por neles existirem espécies classificadas, não é permitido o abate. O Pico está cheio de incensos e faias, tamujo, urze, sanguinho, pau-branco, e até canavial e roca-de-velha, algumas delas espécies classificadas como endémicas. Endémicas ou não, não deixam de ser, nesta ilha, plantas infestantes que prejudicam seriamente os terrenos e impedem as espécies úteis de progredir, como é o caso do incenso que só tem o único mérito de ter uma floração aromática. Mas isso não basta para a conservarmos em terrenos aptos a outras culturas.

Julgo que as entidades públicas, ao porem em execução as normas impostas pela Troika, devem analisar, previamente, os seus efeitos prejudiciais ao bem estar das populações. “Apertar o cinto” e morrer na miséria não é sistema honesto. Encontrem-se outros meios de pagar as dívidas e debelar a crise, não à custa dos míseros salários e ordenados da maioria dos portugueses e do indispensável sustento das famílias, sem esquecer as crianças indefesas e os velhos. Pois estes já deram o seu contributo muito avantajado para o sustento e progresso da Nação. E agora, quantos deles vivem da caridade publica ou nos lares, ou recebendo esmola das instituições particulares!

Hoje o pão por Deus não é apenas o reatar de uma tradição, mas um dia em que os necessitados, crianças ou idosos, principalmente, estendem a mão à caridade pública, à espera de uns cêntimos (por onde andam os escudos de saudosa memória?!) para mitigar a fome.



Vila das Lajes.

24 de Outº de 2011

Ermelindo Ávila