NOTAS DO MEU
CANTINHO
Até meados
do século XX, as ilhas açorianas eram terras quase ignoradas.
Poucos eram os contactos que as suas gentes tinham com o exterior e,
muitos açorianos nasciam, viviam e morriam sem conhecer a ilha que
lhes ficava fronteira.
A navegação
era escassa, pois os dois barcos da Empresa Insulana de Navegação
que explorava a rota Lisboa – Madeira - Açores só saíam da
capital duas vezes no mês. Por cá, inicialmente, eram os vapores de
doze e de vinte
e oito, dias em que chegavam a esta ilha.
Raramente,
um dos barcos da Frabe Line – normalmente o “Sinaia”, passava
no porto de Angra, pois a sua rota era Providence, (nos Estados
Unidos) – Horta - Ponta Delgada - Lisboa.
Uma vez
passou em Angra o “Saturnia” e o jornalista, convidado pela
agência a visitar o barco, escrevia, admirado: É
uma verdadeira cidade flutuante. Foi tal o
assombro que lhe causou o luxo do transatlântico.
Valiam
os barcos do Pico que, no verão, percorriam as ilhas do Grupo
Central e Oriental. Primeiro a lancha “Calheta” e, depois, o
“Ribeirense”, a seguir o “Andorinha”, para terminar no “Terra
Alta” – “Terrialta” como vulgarmente era conhecido. E que
alegria causava aos picoenses, ou picarotos, residentes em Angra, a
chegada de um barco do Pico! Mas muitos dos angrenses também não
faltavam, principalmente, para receberem notícias de S. Jorge a que
alguns estavam ligados ou somente para assistir ao movimento do
porto.
Certa
ocasião, o “Andorinha” preparava-se, ao entardecer, para viajar
para Ponta Delgada. Estava acostado ao Cais do Porto de Pipas.
Terminada a manobra, iniciou muito lentamente a marcha e ia rodando a
ponta do Cais, rumo a S. Miguel, quando um cavalheiro, caminha para a
beira do molhe e diz: Mestre José Gaspar, pode trazer-me de S.
Miguel uma dúzia de laranjas? Sim, Sr. João
Baldaia, foi a resposta. Este um caso apenas
de entre muitos outros idênticos.
Angra,
apesar do isolamento, era uma cidade onde ainda existia e se
respeitava certa aristocracia. Ainda conheci algumas senhoras irem à
Missa dominical da Sé em coche puxado por dois lindos cavalos e com
cocheiro de chapéu de pelo e luva branca.
Mas,
mau grado o isolamento com o exterior, Angra tinha uma vida social e
cultural intensa. Além de Famílias
distintas que conservavam com certo orgulho as tradições do seu
passado, tinha um ambiente cultural distinto, mercê das
personalidades que por lá existiam.
Não
dispunha, ao tempo, de grandes estabelecimentos comerciais mas tinha
diversos e de variados ramos. A Loja do Atanásio era o centro de
reunião da melhor sociedade angrense. Na Livraria Editora Andrade, à
rua Direita, reuniam os intelectuais. E recordo o Tenente Coronel
José Agostinho, o Dr. Luís da Silva Ribeiro, o Dr. Henrique Braz, o
escritor Gervásio Lima, o Dr. Francisco Lourenço Valadão Jr.,
Maduro Dias, João Costa Moniz, Raimundo Belo, Dr. Cândido Forjaz,
Dr. Manuel de Sousa Menezes, e tantos outros, que ali publicavam seus
livros, apreciavam as recentes publicações e analisavam a vida
intelectual.
E
havia comerciantes de grande prestígio. Recordo Manuel Borges de
Ávila, Manuel Magalhães, Basílio Simões, casa de atacados, e
moagem de farinação de trigo e o sr. Pereira, da Rua Direita, o
Lourenço. E tantos mais.
Luís
Ribeiro, além de advogado, funcionário administrativo e etnógrafo
distinto, era um grande violinista e crítico musical. E falando de
música, lembro Tomás Borba, Henrique Vieira, com a sua orquestra, o
Pe. José de Ávila e o orfeão do Seminário, estabelecimento de
ensino de grande prestígio cultural pelos Mestres de que dispunha:
Dr. Bernardo Almada, Dr. José Pacheco Bettencourt, Dr. Cardoso do
Couto, Dr. António Vasconcelos, Dr. Garcia da Rosa, Cónego
Pereira, Pe. Costa Ferreira e outros mais.
Desse
prestigiado grupo de intelectuais surgiu mais tarde o Instituto
Histórico da Ilha Terceira, presidido pelo Dr. Luís da Silva
Ribeiro.
Mas
a cidade não se ficava pelos seus habitantes e actividades
económicas, sociais ou literárias. Eram notáveis as reuniões do
Clube Musical, do Lawn Tennis Club ou da Cozinha Económica, para não
referir o Teatro Angrense.
Subir
à estrada de S.to António do Monte Brasil, ou à Memória; deixar
para trás o histórico burgo e entrar no Jardim Público e
acolher-se às suas frondosas árvores ou gozar o perfume deleitante
do imenso roseiral que vicejava no relvado viçoso e lindo, além de
outras espécies raras, tudo carinhosamente cuidado pelo antigo
jardineiro, uma pessoa simpática e acolhedora, e, ao domingo,
assistir aos magníficos concertos da Banda Militar; voltar às ruas
do histórico burgo e ir até ao Pátio da Alfândega e aí encontrar
alguns amigos ou conterrâneos, que os havia, gozar o espectáculo
das bonançosas águas da esbelta baía ou tentar assistir à
chegada de algum barco do Pico, anunciado pelo “facho”, e
portador de alguma notícia familiar; quem não recorda esta cidade
que, justamente, é hoje Património Mundial?
Angra
do Heroísmo era assim nos anos trinta. Recordo-a com um misto de
saudade, embora nem tudo nem todos possa aqui lembrar. São passados
tantos anos...
Lajes
do Pico,
Julho
de 2014.
Ermelindo
Ávila
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