quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Anos da fome


NOTAS DO MEU CANTINHO


O doutor Gaspar Frutuoso, micaelense, na sua obra “Saudades da Terra – Livro Sexto”, referindo-se à ilha do Pico, (pág. 289), escreve: “...a vila das Lagens, que é a principal e maior que há na ilha, de mais de três léguas de limite, cuja igreja é de três naves, da advocação da Santíssima Trindade e cabeça de toda ela, que terá cento e quarenta e cinco fogos, e almas de confissão quinhentas e oitenta e seis, das quais são de comunhão quatrocentas e quarenta e duas, onde foi vigário o licenciado Gonçalo de Lemos, ...e agora é o licenciado Gaspar Fernandes, também pregador e ouvidor, com quatro beneficiados, e vive gente nobre e rica... Há nesta freguesia muitas vinhas, que vão em muito crescimento, e grandes criações de gado vacum e ovelhum e algumas cabras, e terras, não muitas, de lavoura de trigo e outros legumes, e muita madeira, que ali se tiram do mato”.
O milho não era conhecido nos primeiros século do povoamento, nem mesmo a batata, o chá, e outros mais.
A população vivia do trigo e das plantas que encontrou, como seja o funcho, de que ainda hoje faz uso.
Como diz Frutuoso, a vinha veio para a ilha logo no início. Sabe-se que foi o primeiro pároco Frei Pedro Alvarez Gigante, que “plantou a primeira vinha, que se fez no Pico, na parte aonde se diz Silveira...” (Frei Diogo das Chagas, in “Espelho Cristalino...” pág 526.)
O milho veio da América para Portugal por volta de 1500 e só chegou aos Açores cerca de 1647.
Os moinhos, naturalmente, não vieram com os primeiros habitantes da ilha, pois só há referências a esses engenhos a partir de 1633. No entanto, a carta passada a Joz de Utra, 2º capitão donatário do Faial e 3º do Pico, dá-lhe direito a possuir “para si todos os moinhos de pão que houver nas ditas ilhas ...”
A batata doce chegou ao Pico em 1860, mas já existia na Florida em 1557; enquanto a batata branca só a meados do século XVII se introduziu nos Açores sua cultura.
O inhame foi introduzido no século XVI. Ficou célebre em São Jorge a revolta do inhame em 1694.
O pastel foi uma das mais antigas plantas introduzidas nos Açores. Veio da Flandres trazida pelo primeiro capitão donatário, Joz de Utre (ou Huertere), planta tintureira que era produzida no Faial e Pico e depois exportada. Do pastel veio o Pasteleiro, na Ilha do Faial.
Neste período bucólico, duma simplicidade bíblica, os primeiros povoadores viveram uma página tocante de Júlio Verne, procurando soluções, improvisando, suprindo tudo quanto o isolamento lhes negava.
À falta de forno, comeram na lage o pão rudimentar das suas refeições frugais, e mais tarde o bolo (...); assavam a carne no borralho; o funcho substituiu a hortaliça que ainda não havera tempo de cultivar, ou de que faltavam sementes (...); inventaram molhos gratos ao paladar, para suprir a falta de azeite de oliveira.” (1)
Mas, apesar disso, houve anos de fome.
De fome foi o ano de 1596. De peste e fome , o ano de 1599.
Na “Phenix Angrense” regista o Pe. Maldonado que o ano de 1647 foi de tremenda fome, em razão da esterilidade dos frutos comestíveis.
João Afonso, em “Açores em Novos Papéis Velhos,” escreve: “Fome! Tanta fome não apenas na Terceira, pois o Senado municipal delibera (...) dar licença também para se embarcarem para as ilhas de bayxo, dez moyos, visto também as necessidades que estão experimentando”.
Silveira de Macedo (2) refere os anos de 1776 e 1785 como anos de fome.
Lacerda Machado recorda o ano de fome de 1858 valendo o Capitão Manuel Machado Soares dispondo de seus teres e haveres.
Escreve Manuel Alexandre Madruga: “Foi este ano de fome (1858) de efeitos tão violentos que, na freguesia de São João Baptista, os seus habitantes se obrigaram a comer bolo feito de soca de jarro e de raiz de feto, ambos de sabor desagradável.”(3)
O ciclone de 1893 destruiu quase totalmente todas as cearas do Pico e Faial. Por essa ocasião, a súbdito americana Rosa Dabney, residente no Faial, importou dos Estados Unidos algumas toneladas de milho que fez distribuir pelas famílias mais necessitadas.
Após a Grande Guerra de 1914-1918 houve uma grande carestia de cereais, passando fome muitas pessoas do Pico. Valeu o milho que os familiares emigrados, nos Estados Unidos, enviaram para as famílias, na Ilha. No tempo era vulgar ouvir-se: todos os navios que apareciam no horizonte, vindos de Oeste, eram os navios do trigo.
Todo este arrazoado para concluir que, com a crise económica que se atravessa, não estão longe novos anos de fome.
Há que voltar à terra. Desbravar de novo os terrenos que por aí estão abandonados e incultos e fazê-los produzir o milho que era a garantia do sustento da maioria do povo. Se não... aguardemos novos anos de fome.
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  1. Lacerda Machado, F.S. – “História do Concelho das Lages”, 1936, pág.78
  2. Macedo, Silveira de – “História das quatro ilhas...”
  3. Madruga, M.el Alexandre - "A Freguesia de S. João Baptista da Ilha do Pico na Tradição Oral dos Habitantes"

Vila das Lajes do Pico,
17-Outº-2012
Ermelindo Ávila

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