quinta-feira, 6 de abril de 2017

COISAS ANTIGAS

A MINHA NOTA

       Não se falava em turismo. Estava-se ainda no primeiro quartel do século XX e as comunicações eram mantidas somente pelos dois velhos navios da Empresa Insulana de Navegação, o “Funchal” e o “San Miguel”, substituídos, depois, pelo “Lima”, confiscado aos alemães no após guerra 14-18, e o “Carvalho Araújo” construído já nos anos trinta para substituir o velho “San Miguel”.
         Com a construção do novo e moderno “Funchal”, o “Lima” veio a “morrer” no mar da Palha, no Tejo.
         Os barcos da carreira Lisboa-Funchal-Açores passavam na ilha do Pico de quinze em quinze dias: o “Lima” a quinze de cada mês e o “Carvalho Araújo”, a 28/30, pelo Cais do Pico. Para os picoenses era o Vapor de vinte e oito.
         Os passageiros entre o Pico e Lisboa eram quase nenhuns: um doente que ia consultar especialista a Lisboa ou a Ponta Delgada e o transporte de carga de e para Lisboa. Do Pico saíam os lacticínios e o gado bovino para abate. De Lisboa vinham os diversos géneros de mercearia, a louça, os materiais de construção e os tecidos. Pouco mais.
         No verão passam por cá um ou dois caixeiros-viajantes, a fazer venda dos produtos continentais. Ficavam um ou dois dias nas vilas. Na Lajes utilizavam a única “casa de hóspedes” ou pensão da Maria José: uma pequena casa, embora de dois pisos, apenas com quatro compartimentos. Era lá que pernoitavam os oficiais da Junta de Inspecção Militar que, anualmente, aqui se deslocavam, um ou outro caixeiro-viajante e o condutor do carro da mala, entre as Lajes e a Madalena. Raramente outro visitante.
         Antes da Maria José regressar dos Estados Unidos, nenhuma casa de hóspedes havia por cá.
          O escritor faialense Ernesto Rebelo narra que, em certa ocasião, veio às Lajes caçar pombos da costa e ver uma “toirada” de moleiros. Para pernoitar, um amigo conseguiu-lhe uma das salas do extinto convento franciscano e nele mandou colocar um colchão onde o escritor dormiu as noites que aqui passou.
          Já no meu tempo da juventude conheci, por aqui, e alquebrado, o Anastácio Bello, um retratista que por aí deixou alguns bons retratos a carvão. Na Matriz creio que ainda existe uma apreciada pintura, em tela, com a Ressurreição do Senhor, que era utilizada no Sábado da Aleluia e que, ultimamente servia de retábulo na capela do Santíssimo na Matriz.
          Aquando da Exposição do Rio de Janeiro, nos anos vinte ou trinta, o Anastácio Bello foi um dos pintores convidados para ir ao Brasil decorar o pavilhão português. Voltou a esta vila, onde permaneceu ainda algum tempo e depois regressou à sua terra. Já estava bastante alquebrado, vítima que era do álcool.
         Certa manhã, saindo da “pensão” encaminhou-se para a mercearia do João de Deus Macedo, como habitualmente, que ficava no outro lado da rua – nesse prédio está hoje instado o Lar de Idosos (ou asilo, como antigamente era conhecido), para tomar a “manhã”. João de Deus, naturalmente, tinha acordado mal disposto – aliás era um conhecido “telhudo” – e não lhe quis fornecer a bebida. Mestre Anastácio, dirigindo-se para o pequeno muro que ficava em frente, onde actualmente está um prédio em cujo rés-do-chão está instalado um estabelecimento de fazendas, e pinta a crayon, a figura do João de Deus sentado num “vaso”… Voltou à loja e chamou o merceeiro. Este, ao ver-se assim ridicularizado, deu-lhe o copo de bebida, dizendo: vai imediatamente apagar. Era o que pretendia o Pintor.
         Enquanto esteve nas Lajes, a “manhã habitual” nunca mais faltou ao Pintor.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           

Vila das Lajes,
2 de Abril de 2017.

Ermelindo Ávila

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