Vivemos uma noite especial. Os sinos dos campanários das Igrejas católicas repicaram festivamente. Um acontecimento extraordinário foi celebrado, na simplicidade cristã do povo de Deus. Tal como aconteceu há 2010 anos, também agora.
O templo encontrava-se normalmente repleto de fiéis quando o sacerdote, revestido dos mais vistosos e por vezes ricos paramentos, chegava ao altar, rodeado de acólitos, para a celebração. A capela ou o coro estavam prontos, no local costumado, para iniciar os cantos litúrgicos.
Quan Enquanto o antigo relógio da torre dava as doze badaladas, o sacerdote entoava o Glória in excelsis Deo; e a capela continuava: Et in terra pax hominibus bonae voluntatis. Tudo em latim.
Os sinos repicavam então festivamente a anunciar a boa nova. O templo ficava totalmente iluminado com lanternas de petróleo ou, mais tarde, candeeiros incandescentes, e as cortinas que vedavam o Presépio grande, abriam-se a expor a gruta iluminada com um foco eléctrico - onde não faltavam as cidades, os montes e vales, as pastagens e os lagos, nem as figuras de pastores trazendo ovelhas e cordeiros – no qual se encontrava reclinado nas palhas de uma manjedoira, o Menino Deus.
A celebração festiva continuava. Ao Evangelho o celebrante dava as tradicionais Boas Festas aos presentes e a todos os homens de boa vontade.
No final da celebração seguia-se o “beija-pé” do Menino, apresentado pelo celebrante a toda a assembleia. Nesse momento principalmente as crianças corriam para junto do Presépio a ver o Menino Jesus, Sua Mãe e S. José, com o burrinho e a vaquinha ao lado. Para elas tudo era um encanto.
A festa terminava com as tradicionais saudações entre pais e filhos, amigos e conhecidos; todos, afinal, porque não se faziam excepções.
Em regressando a casa, cada um procurava a sua prenda. E havia-as simples e pobrezinhas mas plenas de um sentimento de amor e de alegria, pelo dia especial que se vivia.
Os miúdos procuravam então as prendas do Menino Jesus. Geralmente uns doces ou figos passados. E por vezes um brinquedo simples, de latão ou feito pelo pai, em horas mortas, para que não fossem descobertos antes do grande dia. Até porque o comércio não se aventurava a importar brinquedos, pois eram poucos os pais que os poderiam adquirir.
As horas das refeições eram diferentes das actuais. O almoço era normalmente a refeição principal. A mesa já se encontrava posta. A carne, ou caçoilha, preparada de véspera, e o pão alvo (ou pão de trigo). Da adega, aqueles que a possuíam, fora trazido o vinho de cheiro para aquela ocasião, e a angelica para servir as visitas com os figos passados, secos na época do verão, colhidos das figueiras da casa. Não se conheciam os bolos do Natal, só mais tarde, enviados pelo correio por parentes e amigos imigrados nos Estados Unidos ou cá introduzidos pelos emigrantes americanos.
Pela tarde faziam-se as visitas aos familiares e amigos. Não eram esquecidos neste dia, os velhos pais, os irmãos e os parentes mais chegados. Uma tradição que se cumpria com alegria.
Nas ruas cumprimentava-se toda a gente. Não se faziam excepções. Para todos iam, prazenteiros, os votos de Boas Festas! Ninguém era excluído. O dia era de paz e alegria.
Á noite aconteciam os “Ranchos do Natal”. Não faltava o anjo com uma estrela erguida numa vara, nem os pastorinhos, trajando as roupas do trabalho, com algumas alfaias e as vulgares canecas de leite e outras figuras típicas.
Cantavam loas apropriadas: “É nascida a luz do mundo, / Altos mistérios encerra..../ Glória a Deus nas alturas / E aos homens paz na terra.”
*
Natal de outros tempos! Hoje é algo diferente. Mas este dia não deixa de ser Natal.
A propósito lembro o que escreveu o notável escritor e contista Nunes da Rosa em Pastorais do Mosteiro, e no conto “Folha que passa…”, ou melhor Natal - em 1894, e convém anotar a data : À noite, da janela do meu quarto - cenário morto do meu passado! – quando os sinos da igreja repicavam festivamente, senti uma enorme impressão de choro…Lembrava-me do Natal de outros anos: tanta criança, tanta luz, tanta alegria, tanta mocidade…e tudo morto, tudo esbatido na triste nostalgia de tempos que não voltam!... E chorei naquele dia as minhas primeiras lágrimas de rapaz…” Hoje alguns poderão o mesmo dizer.
E porque é Natal aqui deixo com muito respeito os meus cumprimentos de Boas Festas a todos os que entusiasticamente fazem este tão apreciado Programa - particularmente a Mário Jorge Pacheco e João Almeida; a quantos exercem suas actividades nesta casa, aos colaboradores dispersos pelas Ilhas, aos radiouvintes, não esquecendo conhecidos, amigos e familiares.
Boas Festas do Natal!
Bom dia!
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À laia de conto
A PRENDA DO NATAL
Era o mês de Dezembro. Chovia torrencialmente. O mar estava ovelhado, como dizem os marinheiros, e temia-se que o vapor da carreira não fizesse serviço no porto. A noite foi algo tempestuosa mas, como por milagre, a manhã despertou calma, sem vento nem chuva.
Os marinheiros dirigiram-se para o cais, pois o velho “Lima” devia em pouco aparecer ao lado do Castelete e dirigir-se, em marcha reduzida, para a baía. Lancha e barcos de descarga já estavam prontos a sair a “Carreira” para se dirigirem ao fundeadouro.
Era o mês do Natal e o comércio aguardava, com ansiedade, as mercadorias para a quadra festiva. Além disso, esperava-se algum estudante que viesse passar as férias com a família, não muitos, pois poucos eram aqueles que se davam “ao luxo” de frequentar escolas superiores.
E o “Lima” surgiu ronceiro e um tanto inclinado para bombordo, como vinha sendo habitual. O “Prático da Baía” já estava no “ancoradouro” aguardando o barco, para lhe indicar o local exacto de “deitar o ferro”. Era assim todos os meses, a menos que o mar tempestuoso não permitisse “fazer serviço” e então lá seguia o “Lima” até ao Faial onde desembarcava os passageiros e esperava que o tempo amainasse para, no dia seguinte, nos portos de regresso, fazer o serviço de carga e descarga e tomar algum passageiro, - eram sempre poucos - que nele embarcavam para as ilhas ou para o continente. E, durante os meses de Inverno, quantas vezes isso acontecia!
Há dezenas de anos o Antonico havia embarcado no mesmo navio, rumo a S. Miguel, afim de tomar o vapor que por lá passava algumas vezes no ano, rumo aos Estados Unidos. Um agente de viagens havia-lhe preparado o “visto” no Consulado Americano e reservado a passagem a pedido de um tio que havia emigrado para a Califórnia, ainda rapaz e por lá se fixara, vigiando ovelhas e, depois, trabalhando numa leitaria. Há quantos anos! Por lá se acomodara, casara e já tinha filhos e netos. E nunca mais voltara à terra.
Uma ou duas vezes no ano escrevia aos Pais mas isso deixou de fazer quando eles faleceram.
Agora era o sobrinho que para lá ia, antes de entrar na idade da Tropa, a pedido da irmã que por cá ficara e velara os Pais.
Nos primeiros anos foi difícil a vida do Antonico. O Patrão, um mexicano, era mesmo mau e tratava os trabalhadores do seu “fame” como negros. O Antonico tudo foi suportando. Da soldada que recebia mandava algumas “dólas” aos pais pelo Natal e o resto ia depositando no Banco, a conselho de um companheiro cabo-verdiano.
Passaram-se meses e anos. O Antonico continuava a trabalhar para o mesmo patrão e a juntar dólares. Certo dia, porém, resolveu ir ao banco saber qual o montante das suas economias. Não acreditou. Lá estavam, com juros acumulados, alguns milhares, não poucos. Ficou surpreendido e sem saber como proceder.
Casar não queria pois detestava a maneira de viver das americanas. À sua volta não havia portuguesas. Não se ia, pois, “enforcar” com qualquer rapariga desconhecida. Demais, não tinha jeito para negócios e o seu dinheiro, só a render juros, não seria suficiente para a velhice, quando o patrão já não precisasse dele. Conversou com o companheiro. Escreveu à mãe perguntando como era a vida por cá, se havia prédios à venda e se davam rendimento.
A resposta não tardou. O Antonico tomou uma resolução: voltar à terra donde saíra há tantos anos. Aí procurar uma moça prendada com quem casar e constituir a sua família. Comprar alguns prédios e dedicar-se a trabalhar o que era seu. E, se melhor o pensou, melhor o fez.
Despediu-se do “Bosse” e dos poucos amigos que tinha. Foi à “estoa” com o companheiro e comprou alguns fatos e peças de roupa para trazer. Foi à cidade e procurou uma agência de viagens que lhe preparou a documentação e a passagem de regresso. E... num dia de Dezembro, partiu. Estava-se próximo do Natal ou da festa do São Nicolau, como por lá se dizia. As ruas das cidades e vilas já se encontravam iluminadas para a grande festa. Antonico nem nisso reparou. Tinha um fito: chegar à sua terra e abraçar a mãe que já devia estar muito velhinha.
Tudo correu como planeara. Da Califórnia veio em carro de fogo para Boston e aí tomou um dos barcos da Fabre Line que escalavam Ponta Delgada. Quando chegou, o “Lima” já estava na doca. No dia seguinte seguiria para as “Ilhas de Baixo”. Na Alfandega tudo correu pelo melhor. Despachada a carga, tomou o “Lima” e instalou-se na segunda classe. Três dias demorou a viagem, pela Terceira, Graciosa e São Jorge.
Naquela manhã de Dezembro, desembarcou na sua ilha. Não conheceu ninguém mas lembrava-se da casa dos Pais. Não demorou muito a lá chegar e a abraçar a velha Mãe que o recebeu surpreendida e chorosa.
“Nunca julguei ver-te mais, meu querido filho! Foi a melhor prenda do Natal que podia ter em toda a minha vida! Que Deus te abençoe e faça sempre feliz, como feliz me fizeste com o teu regresso a esta pobre casa!”
Vila das Lajes
Natal de 2010
Ermelindo Ávila
25 Dezembro 2010
Ermelindo Ávila
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