segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

CEREAIS E OUTROS GÉNEROS

Escreve Vitorino Magalhães Godinho em A Economia dos Descobrimentos Henriquinos, citado por Ernesto Veiga Oliveira e Benjamim Pereira, in Tecnologia Tradicional Agrícola dos Açores que o trigo foi a primeira grande cultura de cereais destas Ilhas, trazido pelos povoadores. Carreiro da Costa, (Boletim da Comissão Reguladora dos cereais do Arquipélago dos Açores. nºs. 31/32,) na rubrica “Rebuscos e Respigos”, diz, por seu lado, que: “O trigo, como se sabe, foi uma das primeiras culturas dos Açores, especialmente na ilha de S, Miguel, e aquela que foi objecto de maior exportação durante os primeiros tempos da vida agrícola insular”.
Na “História Insulana”, a pág. 213, o seu autor, P. António Cordeiro, informa: “Das terras lavradias (da ilha de São Miguel) não só se ocupam em trigo as mais delas, mas também em linho, e tanto, que ainda vai para as outras ilhas. Para o Brasil e para Portugal…”.
Em 1585 na Ilha de São Miguel houve grande produção de trigo de tal modo que um tal Pedro Anes, do Pico, morador na Ribeirinha, comprou a Luiz Gago, avô de Rui Gago da Câmara, oito moios de trigo por dezasseis quintais de pastel, que valia então o quintal a dois tostões somente”. (“Arquivo dos Açores”, Vol. XII, citando “Saudades da Terra” – de Gaspar Frutuoso, L.º 4º, Capº 51.) E ainda de Gaspar Frutuoso: “Este Pedro, do Pico. deu por uns sapatos brancos (que valiam naquele tempo trinta reis) para um seu criado seis alqueires de trigo.” Era uma abundância tal que o trigo, parece, não tinha valor.
Ainda a propósito do trigo, por Lei de 12 de Setembro de 1561, Dom Sebastião estabelecia as regras a que deviam obedecer as medidas de pão nas ilhas dos Açores. Por essa Lei somente passava a haver medidas de alqueire, meio alqueire e quarta de alqueire.
Depois apareceu nos Açores o milho, vindo dos Estados Unidos da América. Os historiadores não são precisos na data da entrada do milho nas ilhas. Carreiro da Costa, um dos mais distintos investigadores e historiógrafos açorianos do século XX, no estudo “Esboço Histórico dos Açores”, citando o Pe. Maldonado, recorda que o ano de 1647 foi um ano de tremenda fome, “em razão da esterilidade dos frutos comestíveis” e pela pouca ou quase nenhuma cultura dos milhos grossos que naqueles tempos se não usava senão por curiosidade.
Numa estatística de produção agrícola de 1702 (“Arquivo dos Açores”, Vol. X, pág. 297, verifica-se que o milho dela não consta, mas somente o trigo, a cevada, o vinho e o linho. Nessa estatística consta que o Pico produziu mil moios de trigo e vinte mil pipas de vinho, esta a maior produção dos Açores. No entanto, vinte e dois anos decorridos, o dizimeiro informava a Câmara Municipal das Lajes que tinha cinquenta moios de milho armazenado nesta Vila e nas Ribeiras, para exportação.
Interessante, pois, a deliberação municipal de 11 de Dezembro de 1847: “A Câmara, atendendo à grave falta de milho que se dá não só neste concelho, mas em toda a ilha, e bem assim a falta de batatas e a carestia dos trigos e igualmente a que das Ilhas mais próximas não deixam exportar milho, deliberou que desde ora em diante digo desde já ficava proibida exportação de milho tanto de dízimo como de particulares para fora do concelho tanto por mar como por terra sob pena de serem apreendidos na forma da lei e castigados os exportadores e condutores cada um com uma multa de dois mil reis.”
Mas esta não foi a única deliberação municipal sobre o milho que, após a sua introdução, passou a base da alimentação dos picoenses e da maioria dos açorianos. O trigo baixou a segundo plano, não apenas pelos cuidados que exigia a sua plantação, como pela exigência da vigilância provocada pela passarada – a praga como o povo lhe chamava – que exigia permanência de uma pessoa, durante o dia na época da maturação.
Em 17 de Maio de 1876, António Joaquim da Rosa, da cidade de Angra, pedia licença à Câmara para remover para a Ilha Terceira 30.000 litros de milho, por não achar comprador e achar ele (milho) a arruinar-se. O requerimento veio por intermédio do Governador para ser informado. Parte do milho havia sido recebido em pagamento de dívidas. Foram ouvidas a Câmara e Juntas de Paróquia por escrito. Foram todas de parecer que se podiam exportar os 30.000 litros de milho. Mesmo assim, a produção de trigo ainda se mantinha com algum volume, muito embora a Câmara, em sessão de 13 de Maio de 1880, considerando que a produção de trigo seria de 39.833 litros, necessitava importar até à próxima colheita, 85.6447 litros, pois poderia existir no concelho 440.568 litros de milho, pelo que deveria faltar, pelos seus cálculos, 353.978 litros.
E já agora registo aqui a introdução do inhame, uma dos produtos base da alimentação da população picoense. Em documentos notariais já em 1752 se fazia referência a dois pedaços de terra da Candelária de inhames e vinha. (F. S. Lacerda Machado, “Os Capitães Mores das Lages", pág. 44) muito embora Carreio da Costa, em apontamento no Boletim da C.R.C.A.A. (Vol.4 pág.99) refira que a cultura do inhame nos Açores deve datar do século XVII.
E ainda mais uma referência à batata doce que deve ter sido introduzida na Ilha Terceira nos fins do século XVI e na Graciosa, Pico e Faial no terceiro quartel do século XIX. No entanto, em 1849 Thomas Anglin, de S. Miguel, importou dos Estados Unidos da América cinco novas variedades de batata doce.
Hoje seria tarefa quase inútil a importação destes géneros para sementeira local. (Note-se que digo sementeira e não consumo…) Basta ver como estão os nossos campos, praticamente abandonados, sem que haja braços disponíveis para os trabalhar.
Até meados do século XIX todos os terrenos eram cultivados. Quase nem havia lenhas, nas partes baixas da ilha, para queimar. Uma tia avó dizia-me que, quando moça, ia com outras companheiras à serra juntar lenha para queimar nas cozinhas. As lenhas vieram descendo e, com a emigração do princípio do século XX , muitos terrenos foram abandonados e as faias, os incensos, e outros arvoredos tomaram conta deles. No conflito mundial de 1939-45, dada a dificuldade de importação de cereais, moveu-se uma campanha para a arroteia e limpeza das terras, chegando a Junta Geral do Distrito, organismo que tinha a seu cargo os serviços agrícolas, a dar prémios a quem procedesse a tais trabalhos.
As encostas desta vila, desde os quintais junto às residências, até ao alto, produziam muito milho e trigo. Havia em todas as chamadas “ladeiras”, o “serrado do trigo”. E pelas terras baixas abundavam, na época própria, as searas do mesmo cereal que, quando amadurecido, contrastando com o verde viçoso dos milharais, ofereciam um espectáculo interessante. Além dos cantares dos “vigias” para espantar a passarada, principalmente os canários que então abundavam, porque o pardal ainda cá não tinha chegado…
Hoje a vegetação selvagem quase invade as residências que lhe ficam vizinhas. E é pena que isso aconteça, pois provoca a necessidade da importação do trigo, que voltou a substituir quase o milho na alimentação dos povos.

Vila das Lajes.
Jan.º de 2008
Ermelindo Ávila

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