A MINHA NOTA
Não
se falava em turismo. Estava-se ainda no primeiro quartel do século XX e as
comunicações eram mantidas somente pelos dois velhos navios da Empresa Insulana
de Navegação, o “Funchal” e o “San Miguel”, substituídos, depois, pelo “Lima”,
confiscado aos alemães no após guerra 14-18, e o “Carvalho Araújo” construído
já nos anos trinta para substituir o velho “San Miguel”.
Com a construção do novo e moderno
“Funchal”, o “Lima” veio a “morrer” no mar da Palha, no Tejo.
Os barcos da carreira Lisboa-Funchal-Açores
passavam na ilha do Pico de quinze em quinze dias: o “Lima” a quinze de cada
mês e o “Carvalho Araújo”, a 28/30, pelo Cais do Pico. Para os picoenses era o Vapor de vinte e oito.
Os passageiros entre o Pico e Lisboa eram
quase nenhuns: um doente que ia consultar especialista a Lisboa ou a Ponta
Delgada e o transporte de carga de e para Lisboa. Do Pico saíam os lacticínios
e o gado bovino para abate. De Lisboa vinham os diversos géneros de mercearia,
a louça, os materiais de construção e os tecidos. Pouco mais.
No verão passam por cá um ou dois caixeiros-viajantes, a fazer venda dos
produtos continentais. Ficavam um ou dois dias nas vilas. Na Lajes utilizavam a
única “casa de hóspedes” ou pensão da Maria José: uma pequena casa, embora de
dois pisos, apenas com quatro compartimentos. Era lá que pernoitavam os
oficiais da Junta de Inspecção Militar que, anualmente, aqui se deslocavam, um
ou outro caixeiro-viajante e o condutor do carro da mala, entre as Lajes e a
Madalena. Raramente outro visitante.
Antes da Maria José regressar dos
Estados Unidos, nenhuma casa de hóspedes havia por cá.
O escritor faialense Ernesto Rebelo narra que,
em certa ocasião, veio às Lajes caçar pombos da costa e ver uma “toirada” de
moleiros. Para pernoitar, um amigo conseguiu-lhe uma das salas do extinto
convento franciscano e nele mandou colocar um colchão onde o escritor dormiu as
noites que aqui passou.
Já no meu tempo da juventude conheci, por
aqui, e alquebrado, o Anastácio Bello, um retratista que por aí deixou alguns
bons retratos a carvão. Na Matriz creio que ainda existe uma apreciada pintura,
em tela, com a Ressurreição do Senhor, que era utilizada no Sábado da Aleluia e
que, ultimamente servia de retábulo na capela do Santíssimo na Matriz.
Aquando da Exposição do Rio de Janeiro, nos
anos vinte ou trinta, o Anastácio Bello foi um dos pintores convidados para ir
ao Brasil decorar o pavilhão português. Voltou a esta vila, onde permaneceu
ainda algum tempo e depois regressou à sua terra. Já estava bastante
alquebrado, vítima que era do álcool.
Certa manhã, saindo da “pensão”
encaminhou-se para a mercearia do João de Deus Macedo, como habitualmente, que
ficava no outro lado da rua – nesse prédio está hoje instado o Lar de Idosos
(ou asilo, como antigamente era conhecido), para tomar a “manhã”. João de Deus,
naturalmente, tinha acordado mal disposto – aliás era um conhecido “telhudo” – e
não lhe quis fornecer a bebida. Mestre Anastácio, dirigindo-se para o pequeno muro
que ficava em frente, onde actualmente está um prédio em cujo rés-do-chão está
instalado um estabelecimento de fazendas, e pinta a crayon, a figura do João de
Deus sentado num “vaso”… Voltou à loja e chamou o merceeiro. Este, ao ver-se
assim ridicularizado, deu-lhe o copo de bebida, dizendo: vai imediatamente
apagar. Era o que pretendia o Pintor.
Enquanto esteve nas Lajes, a “manhã
habitual” nunca mais faltou ao Pintor.
Vila
das Lajes,
2
de Abril de 2017.
Ermelindo
Ávila
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