quinta-feira, 29 de abril de 2010

À LAIA DE CONTO

José andava triste. Na escola afastava-se dos companheiros, pois nem sempre era tratado por eles com o devido carinho. E isso feria-o atrozmente. Ignorava a razão de semelhante desprezo e, embora quase todos os dias perguntasse à mãe, Jacinta Luísa, a razão de tal tratamento, recebia sempre uma resposta que não o satisfazia: Os companheiros eram filhos de famílias ricas ou remediadas e não queriam misturar-se com os pobres; que tivesse paciência mas que um dia também havia de ser como eles. Talvez rico e com a vida que eles hoje têm. Mantinha essa esperança.

José nunca conhecera o pai. Era filho de mãe solteira, como se dizia. No dia do Pai não tivera o gosto e o prazer de beijar e abraçar aquele que lhe dera o ser. E a mãe continuava numa mudez angustiosa. Valia-lhe o carinho da avó, com quem viviam, mas ela também nunca revelara o segredo. Não sabia quem era o pai, dizia. E mantinha-se silenciosa, embora não deixasse de manifestar a tristeza e angústia que lhe ia no íntimo.

A mãe, uma jovem de vinte e poucos anos, trabalhava numa fábrica de lanifícios para sustentar a mãe e o filho. Mas lá, também, não tinha amigas. Todas as companheiras eram pobres ou remediadas, pois as ricas não trabalhavam, antes frequentavam as universidades, embora levassem dois, três ou mais anos, além dos normais, para conseguirem tirar um curso.

E assim passavam as semanas, os meses e os anos. E o José a crescer e a viver numa penúria. Não pensava em estudar para além do ensino obrigatório, que, nas circunstâncias actuais, não permitia arranjar um emprego decente. Mas mais não conseguiria pois a mãe não ganhava o suficiente para suportar os estudos secundários e muito menos os superiores.

José não frequentava a catequese, nem sabia o que isso era, pois era de uma família que não recebera qualquer instrução religiosa.

Um dia, porém, tudo se modificou. Na localidade apareceu um cavalheiro bem posto e ainda novo. Viera do estrangeiro e procurava a moradia de uma tal Maria Cremilde que havia sido sua companheira na juventude. Pelo nome ninguém a conhecia por ali.

É que a Cremilde, ao mudar-se para aquele lugar, após o nascimento do filho, passara a ser conhecida por Jacinta Luísa. E já haviam passado alguns anos, tantos quantos tinha o José, que também mudara de nome, pois o nome do registo era António, o nome do pai. Mas o cavalheiro não desistiu. Um dia, certa mulher, e as mulheres nisso são peritas, andou a indagar e conseguiu descobrir a Maria Cremilde.

Procurou o Dr. António Luís e deu-lhe conhecimento da sua suspeita. O resto adivinha-se. A Maria Cremilde, e muito menos a mãe, não queriam

aceitar o Dr. António mas este tanto insistiu que acabou por vencer.

Estava-se na Páscoa. O Dr. António Luís aproveitara as férias para vir a Portugal e cumprir aquele compromisso que havia feito ainda estudante e que nunca esquecera.

E o casamento, que havia sido prometido e nunca realizado, tantos anos eram passados, acabou por realizar-se.

Foi então que o José conheceu o Pai, um jovem médico que, depois do relacionamento com a mãe, havia partido para o estrangeiro, deixando a Maria Cremilde na mais triste das situações. Na vida do José tudo se modificou. Teve amêndoas e outras prendas. Foi a primeira Páscoa feliz!

*Hoje são tão vulgares casos como este ou a ele idênticos...


Vila das Lajes do Pico

Março de 2010

Ermelindo Ávila


sábado, 17 de abril de 2010

Procissão das Preces

Notas do meu cantinho

Vale a pena lembrar a data. Até meados do século passado era assinalada com uma procissão, denominada “Procissão de Penitência” com o Senhor Jesus das Preces, ou Bom Jesus como era antigamente conhecida. Uma imagem que, segundo Silveira de Macedo , “fora arrojada pelo mar à praia, e aí achada: tem aqueles povos com ela particular devoção em sua honra celebram no dia 25 de Março ( está equivocado o historiador, pois foi sempre no mesmo dia 19 de Abril), uma solene missa de acção de graças com sermão e procissão com a mesma imagem até à igreja de S. Francisco, em cumprimento de um voto feito em 19 de Abril de 1725, por ocasião duma extraordinária enchente de mar que causou muitos estragos na vila.”(1) Uma data bastante lembrada para os lajenses.

Durante anos foi recordado esse pavoroso enchente. Segundo uma antiga tradição, o mar entrou na matriz e até deixou peixes em cima dos altares. A Matriz ficou bastante arruinada o que levou o Bispo D. João Marcelino aquando da visita pastoral que fez à ilha, mandar repará-la. Afinal já não era nova, pois a sua construção vem do ano de 1506, segundo Frei Diogo das Chagas, que diz: ...e durante muitos anos não teve esta Ilha outra freguesia mais que esta, e de todas as partes aonde moravam os povoadores vinham a ela, foi uma pequena Igreja do Apóstolo Sam Pedro (que hoje – 1654 – é ermida) sua paróquia, que fica a um cabo da Vila a Nordeste da barra, e porto dela, pegado a um braço de mar, que aí entra, e faz rio morto, a qual por ser pequena trataram de fazer outra em o meio da Vila, como de efeito fizeram, no lugar em que agora está, do Orago da Santíssima Trindade, para cujo efeito lançaram finta em todos os moradores da Ilha e nas fazendas dos Ausentes, conforme cada um tinha de Cabedal...”(2)

A seguir publica a relação das “Taixas das Fazendas e Pessoas”. Eram 45 os moradores e a finta rendeu 28.000, (reis) segundo o Professor Doutor Artur Teodoro de Matos que prefaciou e dirigiu a publicação do “Espelho Cristalino”, em 1989.

O ciclone de 28 de Agosto de 1893 voltou a fazer estragos na igreja Matriz o que levou a junta de paróquia a iniciar a construção da nova, no mesmo local da antiga, e cuja primeira pedra foi benzida a 7 de Julho de 1895.

A imagem do Senhor Jesus era de grande devoção até que uma sociedade baleeira resolveu adquirir nova imagem, quando a

Matriz funcionava na Igreja de São Francisco. A antiga imagem só saía em procissão no dia 19 de Abril.

Recordo o ciclone de 9 de Fevereiro de 1936 que derrubou a muralha de defesa, na Lagoa, e que suportava a antiga rua nova da Pesqueira, além de umas casas, no Portinho da Ribeira do Meio. A população aflita dirigiu-se ao Pároco e Ouvidor de então, Pe. José Vieira Soares a solicitar a saída do Senhor Jesus das Preces. E assim aconteceu. O Pe. José Vieira, pessoa de grande físico, tomou a imagem e, com a ajuda de uma “funda”, saiu com o povo a percorrer as ruas da beira mar e, em certa altura, elevou-a fazenda uma súplica ao Senhor, a que o povo presente, sentidamente, correspondeu. E, naturalmente, outras ocasiões houve, em que assim aconteceu.

Mas, um dia, sucedeu o inesperado. Anunciada a procissão compareceram em São Francisco algumas pessoas mas o Pároco e Ouvidor de então, Padre António Cardoso, não teve quem levasse o andor. No tempo as senhoras ainda não tomavam parte activa na Liturgia. A procissão não saiu e nunca mais se realizou, quebrando-se assim uma secular tradição e deixando de se praticar um acto de reconhecimento e gratidão ou promessa dos antepassados.

A Imagem do Senhor Jesus (primitivamente era conhecida por Bom Jesus e até havia confraria própria) é a mesma que, depois de restaurada, foi erecta no novo altar da capela mor da Matriz da Santíssima Trindade. É uma rica escultura que bem merecia ser exposta à veneração dos fieis e não andar arrecadada em armários ocultos.

Vale a pena recordar o 19 de Abril, que ocorre na próxima segunda feira. Para os lajenses é uma data memorável e assinala o primeiro enchente de mar que invadiu a vila e de que há memória.

Que não se faça a procissão mas que se recordem esses nossos avoengos que tanto trabalharam, penaram e sofreram para nos legarem a terra desbravada e aproveitada, as vilas e freguesias, o todo que hoje usufruímos e gozamos.

___________

  1. Macedo, António Lourenço da Silveira,”História das Quatro Ilhas...” III Vol. Pág 79

2) Chagas, Frei Diogo das , “Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores”,pág. 515.


Vila das Lajes,

Abril de 2010.

Ermelindo Ávila


domingo, 11 de abril de 2010

Jogos tradicionais

Longe vão os tempos em que os adolescentes e a juventude se divertiam de maneira simples e folgazã.
Utilizavam os jogos populares, que simples eram igualmente, e passavam uma juventude alegre e risonha.
No sábado de aleluia iniciava o jogo do pião que, normalmente, era praticado durante as semanas seguintes até à Trindade. No verão predominava o jogo da baleia. Este mais movimentado e atrevido, pois os maiores faziam de oficiais e trancadores e os miúdos eram as vítimas – as baleias. Mas esses jogos eram uma reprodução quase autêntica da baleação que os irmãos mais velhos, os pais e até os avós praticavam nos mares.
Os botes eram “construídos” por duas canas, presas nas pontas, com troços ao meio a dar-lhes a configuração bojuda, na imitação dos verdadeiros botes. Tripulava-os apenas o “oficial” e o “trancador”, pois o espaço não dava para mais. À frente corriam os baleotes, fugindo à perseguição dos baleeiros. E, quando conseguiam alcançar algum com o “arpão”, também de um troço de canavial, preso a um barbante, a pesca estava conseguida e o reboque iniciava-se para terra, ou seja, para o ponto de partida da improvisada arriada.
Outros jogos havia, como o da barra, o da bola, e outros mais. Até havia o “jogo de apanhar”. Dois grupos se formavam e corriam pelas ruas da vila, a ver qual deles caçava mais “vítimas”.
Tudo era facilitado pela ausência de trânsito de veículos. Os automóveis, (o primeiro, ou um dos primeiros, veio dos Estados Unidos trazido por um emigrante), raramente apareciam na vila. Hoje seria impossível a prática de qualquer desses inofensivos jogos, pois em todas as ruas andam ou estacionam numerosos veículos, sendo até difícil, em certas horas do dia, aos simples transeuntes por elas circular.
O jogo do peão era praticado por adolescentes, jovens e também homens maduros. Estes utilizavam piões de maior dimensão, construídos em buxo ou pau branco. E quando algum perdia, sujeitava-se a que o seu pião sofresse as ferroadas dos piões dos vencedores.
Mais tarde apareceu o croqui, em pequenos recintos, que pouco durou.
Tudo simples, tudo de sã alegria e de despreocupada prática. Hoje não se fala no pião, nem do jogo da barra e muito menos da baleação. Joga-se o futebol, somente alguns, o voleibol, o hóquei em patins e pouco mais. Mas estes tornaram-se jogos profissionais e os respectivos jogadores, na generalidade, nem da terra são. Desporto profissional, dizem, com executantes contratados por largas quantias, tal como os actores de cinema ou outros mais.
Não seria de considerar a pratica de certos desportos, não somente na ilha do Pico mas em todo o arquipélago, deixando de contratar executantes estranhos mas voltando, à prática desportiva como desporto de lazer. Evitava-se o dispêndio de avultadas importâncias, até do erário público, e facilitava-se aos jovens um desporto mais saudável.
No entanto vivemos em épocas diferentes. Maneiras diversas de passar os tempos de ócio ou de recreio.


Vila das Lajes
11 de Abril de 2010
Ermelindo Ávila

terça-feira, 6 de abril de 2010

AS DOMINGAS

Terminadas as Festas Pascais entramos nas chamadas Domingas ou seja os sete domingos que antecedem o Domingo de Pentecostes (no corrente ano a 23 de Maio).
Antigamente eram todos esses domingos preenchidos por Coroações, ou seja festas em honra da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade.
A Freguesia da Santíssima Trindade (actualmente denominada incompreensivelmente por Lajes do Pico), tinha grupos de irmãos que, de cinco em cinco anos, “levavam a Coroa à Igreja”, ou seja promoviam uma festa em honra e louvor do Espírito Santo. Em cada domingo um irmão, previamente sorteado, levava em cortejo a Coroa do Divino Paráclito à Igreja Paroquial, onde era celebrada Missa cantada e coroação e, em casa, oferecia jantar a doze pobres e a familiares e amigos.
Antes da criação da paróquia da Silveira, a freguesia estava dividida em cinco zonas: Silveira, Almagreira, Ribeira do Meio, Vila e Terras. Com o falecimento dos irmãos e/ou ausência para o estrangeiro, foi desaparecendo essa tradição que hoje, felizmente, ainda é mantida nas Terras e na Almagreira.
Tudo afora as promessas, que ainda as há, de “levar a Coroa”.
Lacerda Machado diz, que “Antigamente, em cada uma das sete Domingas, havia coroação, estando a cargo, por anos, das povoações: Terras, Vila e Ribeira do Meio. Também havia coroações na Silveira e Almagreira.
“Os festejos das Domingas consistiam em missa cantada e coroação, em seguida às quais o mordomo oferecia jantar aos colegas das outras Domingas e pessoas que convidava “
Ainda hoje a tradição se mantém na Almagreira e nas Terras. De cinco em cinco anos as mesmas famílias cumprem a tradição, convidando para a “sua festa” algumas centenas de pessoas, a quem oferece lauto jantar de “sopas do Espírito Santo”.
Para isso aquele lugar construiu um amplo salão de dois pisos, que pode receber mais de mil convivas , onde é servido o jantar .
O mesmo acontece na Almagreira, onde foi igualmente construído vasto salão.
E falando em salões, recordem-se os da Ribeira do Meio, da Silveira, das Terras, de São João, e de Santa Cruz recentemente construídos e que, embora destinados a sedes das sociedades locais, são dispensados para as funções do Espírito Santo. O mesmo acontece nesta vila com a sede da Liberdade Lajense em quase todas as freguesias e localidades da Ilha. Uma maneira significativa de perpetuar “enquanto o mundo durar”, como se dizia antigamente, tão expressivas manifestações de fé dos picoenses, como aliás dos açorianos.
Ainda a propósito das coroações, é de lembrar o que diz Silveira de Macedo na “História das Quatro Ilhas”, citado por Lacerda Machado:
“Em 1871 o autor da História das quatro ilhas avaliava em 60 moios de trigo, 60 reses bovinas, além de da carne de carneiro e porco, e 30 pipas de vinho, o consumo das festas do Espírito Santo na ilha do Pico, a cargo dos mordomos e irmãos.
Hoje, em toda a Ilha não será menor o consumo, durante as festas do Espírito Santo que, em razão dos votos emitidos, têm lugar desde o primeiro domingo após a Páscoa até aos meses de Julho e Agosto. É que, normalmente, durante os meses de inverno não se realizam tais festividades.
E, na época em que estamos, já se fazem os convites para as coroações. É que tudo é preparado com a antecedência devida. Até o gado que se abate vem destinado quase após o nascimento. E a farinha que se consumia provinha do trigo semeado, em maiores extensões, no anterior à solenidade. Hoje já não se cultivam cereais. Os campos são utilizados para pastagens de gado bovino , produtor de leite. Julgo que não se levará muito tempo que se volte atrás...

Vila das Lajes,
27.Março.2010.
Ermelindo Ávila

sábado, 3 de abril de 2010

Chegámos à Pascoa


Bom dia !

Chegamos à Páscoa. Na maioria das residências açorianas preparam as donas de casa, como se dizia, a tradicional refeição pascal. Não faltarão o folar e as amêndoas, onde de variadíssima qualidades, nem os vistosos “ovos”.
Casas haverá em que isso não acontecerá. A época incerta que se atravessa trouxe-nos muitas surpresas. Todos os dias os meios de comunicação social falam em crise económica e em desemprego.
Com a Missa da Ressurreição termina o período quaresmal e entra-se num novo período: AS DOMINGAS do Espírito Santo. E, aqueles que têm promessas a cumprir, já as preparam com entusiasmo e afã. Até os convites já se fazem a conhecidos, amigos e parentes. Uma tradição que vem de longe e que é a única, talvez, que as gentes açorianas mantêm com entusiasmo, embora por vezes com algum sacrifício.
António Silveira de Macedo, autor da “História das Quatro Ilhas que formam o Distrito da Horta”, diz que, no ano de 1871, os picoenses devem ter gasto nas festas do Espírito Santo 60 moios de trigo, 60 reses bovinas, além de carne de carneiro e porco e 30 pipas de vinho. Por aqui se pode imaginar quantos convivas não tomavam parte nas chamadas coroações. Hoje não é diferente. Pois se em cada coroação, por estes lados do Sul do Pico, o que melhor conheço, em cada jantar do Espírito Santo são servidos algumas centenas de convidados, chegando mesmo, em algumas coroações, a atingir os mil !
Amanhã é o grande dia da Ressurreição. Em quase todas as paróquias as cerimónias litúrgicas têm começo com solenes procissões do SANTÍSSIMO SACRAMENTO. São de assinalar os vistosos e artísticos tapetes de flores que enfeitavam e aqui e ali ainda se vêm, s ruas por onde passa o solene cortejo e as ricas colgaduras que se estendem nas varandas e janelas, algumas bastante antigas e que só saem das velhas arcas neste dia festivo e no dia do Padroeiro.
Referi que “em quase todas as paroquias”, e não todas porque, infelizmente nem todas têm pároco próprio. Com a diminuição de clero que vem acontecendo, é triste dize-lo, há paróquias que só têm Eucaristia dominical ao sábado em horas incertas, e, mesmo assim, nem todos. É tempo de se pensar a sério nesta situação para não cairmos em total descristianização e, não muito longe, algumas igrejas, que tantos sacrifícios custaram ao povo crente, verem encerradas as portas. E, com isso, um novo paganismo, mais intenso do que o actual, se verificará.
Boas Festas Pascais e
Bom dia!

(Crónica para o Programa Manhãs de Sábado da RTP)
Vila das Lajes.
29 de Março de 2010.
Ermelindo Ávila