sábado, 1 de fevereiro de 2020
ANGRA DOS ANOS TRINTA
Lembrei-me, caros leitores, que era importante recuperar algumas das crónicas escritas por meu pai.
Esta tem um cunho especial: foi feita a meu pedido para que ele recordasse os seus tempos de estudante no Seminário de Angra, precisamente nessa década. Por acaso, não se encontrava neste blog.
NOTAS DO MEU CANTINHO
Até meados do século XX, as ilhas açorianas eram terras quase ignoradas. Poucos eram os contactos que as suas gentes tinham com o exterior e, muitos açorianos nasciam, viviam e morriam sem conhecer a ilha que lhes ficava fronteira.
A navegação era escassa, pois os dois barcos da Empresa Insulana de Navegação que explorava a rota Lisboa – Madeira - Açores só saíam da capital duas vezes no mês. Por cá, inicialmente, eram os vapores de doze e de vinte e oito, dias em que chegavam a esta ilha.
Raramente, um dos barcos da Frabe Line – normalmente o “Sinaia”, passava no porto de Angra, pois a sua rota era Providence, (nos Estados Unidos) – Horta - Ponta Delgada - Lisboa.
Uma vez passou em Angra o “Saturnia” e o jornalista, convidado pela agência a visitar o barco, escrevia, admirado: É uma verdadeira cidade flutuante. Foi tal o assombro que lhe causou o luxo do transatlântico.
Valiam os barcos do Pico que, no verão, percorriam as ilhas do Grupo Central e Oriental. Primeiro a lancha “Calheta” e, depois, o “Ribeirense”, a seguir o “Andorinha”, para terminar no “Terra Alta” – “Terrialta” como vulgarmente era conhecido. E que alegria causava aos picoenses, ou picarotos, residentes em Angra, a chegada de um barco do Pico! Mas muitos dos angrenses também não faltavam, principalmente, para receberem notícias de S. Jorge a que alguns estavam ligados ou somente para assistir ao movimento do porto.
Certa ocasião, o “Andorinha” preparava-se, ao entardecer, para viajar para Ponta Delgada. Estava acostado ao Cais do Porto de Pipas. Terminada a manobra, iniciou muito lentamente a marcha e ia rodando a ponta do Cais, rumo a S. Miguel, quando um cavalheiro, caminha para a beira do molhe e diz: Mestre José Gaspar, pode trazer-me de S. Miguel uma dúzia de laranjas? Sim, Sr. João Baldaia, foi a resposta. Este um caso apenas de entre muitos outros idênticos.
Angra, apesar do isolamento, era uma cidade onde ainda existia e se respeitava certa aristocracia. Ainda conheci algumas senhoras irem à Missa dominical da Sé em coche puxado por dois lindos cavalos e com cocheiro de chapéu de pelo e luva branca.
Mas, mau grado o isolamento com o exterior, Angra tinha uma vida social e cultural intensa. Além de Famílias distintas que conservavam com certo orgulho as tradições do seu passado, tinha um ambiente cultural distinto, mercê das personalidades que por lá existiam.
Não dispunha, ao tempo, de grandes estabelecimentos comerciais mas tinha diversos e de variados ramos. A Loja do Atanásio era o centro de reunião da melhor sociedade angrense. Na Livraria Editora Andrade, à rua Direita, reuniam os intelectuais. E recordo o Tenente Coronel José Agostinho, o Dr. Luís da Silva Ribeiro, o Dr. Henrique Braz, o escritor Gervásio Lima, o Dr. Francisco Lourenço Valadão Jr., Maduro Dias, João Costa Moniz, Raimundo Belo, Dr. Cândido Forjaz, Dr. Manuel de Sousa Menezes, e tantos outros, que ali publicavam seus livros, apreciavam as recentes publicações e analisavam a vida intelectual.
E havia comerciantes de grande prestígio. Recordo Manuel Borges de Ávila, Manuel Magalhães, Basílio Simões, casa de atacados, e moagem de farinação de trigo e o sr. Pereira, da Rua Direita, o Lourenço. E tantos mais.
Luís Ribeiro, além de advogado, funcionário administrativo e etnógrafo distinto, era um grande violinista e crítico musical. E falando de música, lembro Tomás Borba, Henrique Vieira, com a sua orquestra, o Pe. José de Ávila e o orfeão do Seminário, estabelecimento de ensino de grande prestígio cultural pelos Mestres de que dispunha: Dr. Bernardo Almada, Dr. José Pacheco Bettencourt, Dr. Cardoso do Couto, Dr. António Vasconcelos, Dr. Garcia da Rosa, Cónego Pereira, Pe. Costa Ferreira e outros mais.
Desse prestigiado grupo de intelectuais surgiu mais tarde o Instituto Histórico da Ilha Terceira, presidido pelo Dr. Luís da Silva Ribeiro.
Mas a cidade não se ficava pelos seus habitantes e actividades económicas, sociais ou literárias. Eram notáveis as reuniões do Clube Musical, do Lawn Tennis Club ou da Cozinha Económica, para não referir o Teatro Angrense.
Subir à estrada de S.to António do Monte Brasil, ou à Memória; deixar para trás o histórico burgo e entrar no Jardim Público e acolher-se às suas frondosas árvores ou gozar o perfume deleitante do imenso roseiral que vicejava no relvado viçoso e lindo, além de outras espécies raras, tudo carinhosamente cuidado pelo antigo jardineiro, uma pessoa simpática e acolhedora, e, ao domingo, assistir aos magníficos concertos da Banda Militar; voltar às ruas do histórico burgo e ir até ao Pátio da Alfândega e aí encontrar alguns amigos ou conterrâneos, que os havia, gozar o espectáculo das bonançosas águas da esbelta baía ou tentar assistir à chegada de algum barco do Pico, anunciado pelo “facho”, e portador de alguma notícia familiar; quem não recorda esta cidade que, justamente, é hoje Património Mundial?
Angra do Heroísmo era assim nos anos trinta. Recordo-a com um misto de saudade, embora nem tudo nem todos possa aqui lembrar. São passados tantos anos...
Lajes do Pico,
Julho de 2014.
Ermelindo Ávila
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